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Manuscrito de 1873, arquivado no cartório mais antigo de Ponta Grossa, registra a doação de uma grande área nas margens do Rio Tibagi à irmandade de São Sebastião. Na época, o terreno foi comprado por 950 mil réis | Reprodução/Henry Miléo/Gazeta do Povo
Manuscrito de 1873, arquivado no cartório mais antigo de Ponta Grossa, registra a doação de uma grande área nas margens do Rio Tibagi à irmandade de São Sebastião. Na época, o terreno foi comprado por 950 mil réis| Foto: Reprodução/Henry Miléo/Gazeta do Povo

Prefeitura e paróquia brigam por terreno

Tronco, um vilarejo cortado pela rodovia PR-151 no município de Castro, surgiu em 1850 a partir da doação de uma devota ao Senhor Bom Jesus. O único resquício da doação é uma capela erguida em nome do santo bem no centro do distrito. Casas, pontos comerciais, uma escola e até mesmo uma igreja evangélica dividem o espaço restante da antiga propriedade de Senhor Bom Jesus. No início deste ano, um campo de futebol ao lado da igreja católica, "sem dono", virou motivo de disputa jurídica entre a prefeitura de Castro e a diocese de Ponta Grossa.

A comunidade organizou um protesto para que o terreno fosse comprado pela prefeitura e transformado em escola. O conselho da igreja interveio e disse que a terra pertencia à mitra diocesana. Uma ação judicial pediu a desapropriação da área. Segundo o pároco Luiz Carlos Mirkuski, responsável pela capela do Tronco, a diocese pediu a revisão do processo porque a desapropriação incluía até mesmo a edificação da igreja. "O campo de futebol está disponível, mas queremos manter a igreja", afirmou o religioso.

Para pôr um ponto final à discussão, o prefeito de Castro, Moacyr Elias Fadel Junior, disse que a prefeitura vai extinguir o processo. "Estamos negociando outra área no Tronco em co­­­mum acordo com o proprietário para construirmos a escola", afirma. Para a aposentada Pedrina Almeida, 67 anos, o desfecho não é positivo. "Eu achava melhor a escola. O campo tem muita algazarra da molecada", conta a vizinha do terreno.

Boas ações escondiam interesses

O latifundiário que agradava ao santo com a doação de parte de seu patrimônio também se valia do retorno financeiro gerado pela movimentação de pessoas no entorno dos oratórios erguidos em homenagem ao santo. A constatação é do historiador carioca Eduardo Schoon, que tem doutorado na Universidade de São Paulo (USP) e se dedica à pesquisa sobre a religião. Ele cita a região central do Paraná que se transformou em rota para os tropeiros que iam ao interior de São Paulo. "O local usado para a construção do oráculo ao santo de predileção virava uma rota, um lugar para as pessoas pararem e descansarem. Então, havia todo um movimento econômico em que o fazendeiro podia vender suas terras a quem se interessasse", afirma.

A região da capela naturalmente se transformava num núcleo de negócios que mais tarde dava origem a povoados e cidades. "Bananal, em São Paulo, se originou numa capela dedicada ao Senhor Bom Jesus e se transformou na cidade mais rica do século 19, e temos também Castro, no Paraná, que cresceu depois da construção de uma capela à Senhora Santanna e foi uma das regiões mais prósperas do interior", analisa Schoon.

Razões

O professor do departamento de História da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) Antonio Paulo Benatte lembra que a prática está arraigada na cultura brasileira. "Parece que as doações e oferendas aos santos são marca de um catolicismo à brasileira, com raízes em Portugal do período medieval, misturado com os santos dos imigrantes europeus de diferentes povos e ainda temperado pelos cultos das religiões afro-brasileiras, nas quais as oferendas também fazem parte dos rituais", diz. Ele ressalta ainda que a oferenda está presente em todos os estratos sociais. "As dádivas aos santos assumem múltiplas formas entre os devotos de diferentes condições sociais, do grande proprietário que deixa em testamento bens e valores até ao pobre que, no botequim, oferece um trago de cachaça ‘para o santo’; passa ainda pelas oferendas de alimentos e pelas procissões e festas religiosas dedicadas aos santos em todas as partes do país", analisa.

  • Parte do vilarejo de Tronco, em Castro, surgido a partir de 1850, quando a área foi doada ao Senhor Bom Jesus

Ponta Grossa - A abundância de terras e a devoção católica levaram muitas famílias abastadas que povoaram o Brasil até o século 19 a doar parte de seus patrimônios aos santos prediletos, em troca do perdão de um pecado ou em retribuição a um pedido atendido. O presente ao santo não era registrado e, com o passar do tempo, muitas áreas se perderam nas mãos de posseiros ou foram absorvidas pelo crescimento urbano. O costume, trazido pelos portugueses, fez herdeiros contemporâneos e ainda hoje a Igreja Católica recebe doações para a construção de templos.

Recentemente, em Tibagi,nos Campos Gerais, a Paróquia Nossa Senhora dos Remédios recebeu duas áreas como doação, uma delas no mês passado. O gesto dos fiéis é enaltecido pelo pároco Nelson Bueno da Silva. "A igreja tem fama de rica, mas ela não é. Nós ainda dependemos muito das doações. A comunidade sempre ajuda." O departamento jurídico da mitra diocesana de Ponta Grossa, que responde pela paróquia de Tibagi, não informou quantas doações aconteceram nos últimos anos, mas resumiu que elas são frequentes.

Informais

O padre, historiador e teólogo José Oscar Beozzo, também vigário de uma paróquia em Lins (SP), pesquisou as terras dedicadas aos santos até o ano de 1863 nas dioceses brasileiras e concluiu que muitas áreas se perderam com o passar dos anos porque eram fruto de doações informais. "Tinha uma certa oficialidade. Quem ficava responsável por cuidar das terras tinha a obrigação de fazer uma ‘esmola’ para o santo, todo o ano. Mas, com o passar das gerações, esse costume foi se acabando e quando chegava a hora de vender os terrenos, se dava conta que eles não tinham escritura", aponta.

Hoje, a doação é feita em nome da mitra e em quantidade menor. "Normalmente são dois lotes, o tamanho certo para construir uma capela", acrescenta padre Nelson. "Santo não tem RG e nem CPF, então fica difícil manter esse tipo de doação", lembra o vice-presidente da Associação dos Notários e Registradores do Paraná (Anoreg), Ítalo Conti Junior. Ele desconhece casos recentes de doação às igrejas, independentemente da religião, mas informa que para que o presente seja registrado em um tabelionato é preciso que o doador apresente os documentos de identificação e o beneficiário tenha Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ).

Em réis

Luiz Sebastião Filho é o cartorário responsável pelo cartório mais antigo de Ponta Grossa – criado em 1827. Por causa disso tornou-se dono de algumas relíquias. Dentre os documentos ele destaca um manuscrito datado de 1873, que trata da doação de uma grande área de terra à irmandade de São Sebastião. O texto revela que naquele ano 19 amigos fazendeiros se reuniram, criaram a irmandade e desembolsaram 50 mil réis cada um para adquirir um terreno na antiga localidade de Conchas Velhas, às margens do Rio Tibagi, que foi oferecido à igreja em homenagem ao santo.

O local, que pertencia ao município de Castro, hoje é distrito de Ponta Grossa e ganhou o nome de Uvaia. O documento não trata do tamanho da área, mas especifica os limites do terreno. "Naquele tempo, a medição dos terrenos era muito precária", justifica o cartorário. Da área depositada ao santo, restou apenas o quadrante onde está instalada a capela.

Castro, nos Campos Gerais, vive uma situação parecida. O povoado se formou em 1704 no regime de sesmarias da coroa portuguesa e era ponto de encontro de tropeiros que iam para a feira de animais em Sorocaba (SP). Como o movimento dos tropeiros incomodava os carmelitas que haviam se fixado na região, o fazendeiro Inácio Taques de Almeida se apossou de uma grande área próxima e lá construiu uma capela em homenagem à Se­­nho­­ra Santanna (avó de Jesus Cristo), doando todo o seu entorno à santa. Hoje, a herança de San­tanna se limita à quadra da igreja matriz. Se há documento sobre a doação, ele se perdeu com o passar de mais de três séculos. "A doação se perpetuou, mas nós não achamos nenhum documento sobre ela", comenta a diretora do Museu do Tropeiro de Castro, Lea Maria Cardoso Villela.

Número desconhecido

O número de áreas remanescentes de doações a santos no Paraná e no país é desconhecido. Nem mesmo a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil sabe precisar a informação. O Instituto de Terras, Carto­grafia e Geociências do Paraná, ligado à Secretaria do Estado do Meio Ambiente, também desconhece esse dado. "Nós sabemos que existem terras remanescentes dessas doações nas regiões mais antigas do estado, mas seria preciso um estudo de uns três a cinco meses para descobrir", comenta o diretor de Terras do Instituto, José Carlos de Araújo.

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