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O direito à saúde, garantido pela Constituição, não implica que a União tenha a obrigação de oferecer tratamentos alternativos não previstos no sistema de saúde por motivos religiosos. É o que defendem juristas ao analisarem a questão envolvendo a recusa de transfusões de sangue por parte de pacientes Testemunhas de Jeová. Nesta quarta-feira (18), o Supremo Tribunal Federal (STF) retomará o julgamento de dois recursos que devem definir uma tese de repercussão geral sobre o tema, que poderá ser aplicada a requerimentos de adeptos de outras religiões. Caso a decisão seja favorável, poderá gerar repercussões orçamentárias.
Embora ambos os recursos tratem da recusa de transfusões de sangue, os casos possuem particularidades. No primeiro, o paciente solicitou que a União custeasse sua transferência do Amazonas para um hospital em São Paulo que realiza o procedimento necessário sem a utilização de transfusão. O pedido incluía despesas com passagens e diárias tanto para ele quanto para um acompanhante. O hospital de São Paulo, credenciado ao SUS, realiza o procedimento que é necessário ao paciente de acordo com as crenças religiosas dele. O relator do recurso é o ministro Luís Roberto Barroso.
O outro recurso, sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes, trata de uma paciente da Santa Casa de Misericórdia de Maceió que teve seu pedido de cirurgia sem transfusão aceito pela equipe médica. No entanto, a administração do hospital exigiu que ela assinasse um termo autorizando a transfusão em caso de necessidade durante o procedimento, alegando que poderia enfrentar problemas judiciais posteriormente. Diante da recusa em assinar o documento, a paciente decidiu deixar o hospital sem realizar a cirurgia.
De acordo com os juristas ouvidos pela Gazeta do Povo, há consenso sobre a inviolabilidade da liberdade religiosa. Ou seja, que um paciente pode recusar tratamentos médicos de acordo com suas crenças religiosas. O próprio STF, em decisões anteriores, já consolidou o entendimento que garante esse direito aos pacientes. A Corte deve agora decidir se esses pacientes podem exigir outros procedimentos e se a União deve custear esses tratamentos.
Testemunhas de Jeová podem ter acesso a tratamentos alternativos que estejam incorporados ao SUS
Os pacientes que são Testemunhas de Jeová, baseados em uma interpretação de trechos bíblicos, acreditam que devem se abster de sangue. Segundo o site da instituição, o sangue é como um símbolo da vida para Deus. Portanto, por obediência, evitam recebê-lo por qualquer via.
Essa crença, de acordo com a Constituição Federal, deve ser respeitada. Por outro lado, segundo juristas, essa mesma lei não obriga o Estado a arcar com todos os procedimentos existentes.
“Quando a Constituição Federal trata sobre o direito à saúde, ela estabelece que é ‘garantido mediante políticas sociais e econômicas’”, explica Bruno Coletto, cientista político e doutor em Direito ela UFRGS. “Ou seja, não é algo assegurado incondicionalmente em qualquer situação para qualquer cidadão, mas uma obrigação estatal assegurada por meio de políticas públicas contingentes e limitadas”, complementa.
Dessa forma, explica, o cidadão não possui um direito individual à saúde, que seja capaz de atender necessidades específicas dele. O acesso se dá, portanto, por meio de tratamentos e procedimentos que o Sistema Único de Saúde (SUS) oferece de forma geral.
Ana Luiza Rodrigues Braga, doutora em Teoria Geral do Direito e professora de Direito Constitucional, concorda que a União não deva arcar com procedimentos diferenciados por questões religiosas. No caso do procedimento alternativo à transfusão, segundo ela, é necessário avaliar se o princípio da isonomia está sendo respeitado, já que o serviço é oferecido em hospital público de São Paulo, e não em Manaus. “Os Testemunhas de Jeová de São Paulo teriam acesso a procedimentos sem transfusão e os do Amazonas não, sendo que há um único serviço de saúde pública?”, questiona.
Por medo de responder a processos, alguns médicos se recusam a realizar procedimentos alternativos
A plena capacidade da pessoa e a ciência dos riscos envolvidos na recusa da transfusão de sangue são fatores que garantem o exercício do direito à liberdade de consciência e crença, afirma Rodrigues Braga. Para a jurista, o caso de Alagoas, que está sob relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, possui características que não devem se opor à decisão da paciente.
“Neste recurso, há a comprovação que existe viabilidade técnica para a realização do procedimento: a recusa não traz risco à saúde pública e coletiva e há anuência tanto da equipe médica quanto da paciente em não querer fazer transfusão de sangue. Nessas condições, a paciente não pode ser obrigada a submeter a um tratamento contrário à sua vontade”, analisa Rodrigues Braga.
"A paciente, neste caso não quer nada além da política pública. Quer apenas que o hospital se abstenha de utilizar a transfusão de sangue, na hipótese de alguma intercorrência. Essa exigência de abstenção me parece garantida pela liberdade religiosa", complementa Coletto.
O Código de Ética Médica estabelece que o profissional é responsável pelos procedimentos que recomenda ou dos quais participa. Com medo de responder a processos administrativos, muitas vezes, os médicos se recusam a realizar cirurgias quando não há a opção de transfusão de sangue.
Instituição relata violações à liberdade religiosa
Na manifestação da Associação das Testemunhas Cristãs de Jeová em um dos processos, a entidade pede que o STF determine que o Poder Público adapte os protocolos para que os cidadãos tenham acesso a tratamentos médicos e técnicas, já disponíveis na rede pública, que evitem o uso de transfusões de sangue alogênico.
No documento, a instituição relata uma série de casos em que os pacientes tiveram tratamento degradante ao se identificarem como Testemunhas de Jeová. Em várias situações apontadas pela instituição, a Justiça obrigou a transfusão de sangue compulsória e há relatos de pacientes sedados, amarrados e impedidos de se comunicarem com a própria família.
Uma paciente de Belo Horizonte (MG), segundo a associação, “foi mantida amarrada por muitas horas ao leito hospitalar, mesmo após a conclusão do procedimento transfusional”. “Seu telefone celular foi confiscado pela equipe hospitalar para que não pudesse pedir socorro aos seus familiares. Os fatos foram registrados no prontuário médico da paciente”, continua o relato.
Coletto destaca que é cabível que o grupo busque, por meio da política, programas estatais de saúde que ofereçam serviços que respeitem suas crenças religiosas. “Isso é uma negociação política, e não um direito individualmente exigível no Judiciário, como se devesse existir uma política pública individual e específica para cada convicção pessoal de cada cidadão brasileiro”, opina.