“Minha maior preparação [para morar na rua] foi quando fiz a peregrinação a pé. Eu precisava me humanizar e para me humanizar, caminhando, peregrinando, sem rumo, sem comida, fui refazendo a minha própria caminhada.
Quando cheguei a São Paulo, na Praça da Sé, num primeiro momento eu tive muito medo. E olhe que eu nem tinha chegado na Cracolândia. Vi muita gente caída, machucada, chorando, roubando. Disse ‘Meu Deus, olhe a minha missão, onde vou trabalhar’. Entrei na Igreja da Sé, rezei, lembrei que eu me preparei para aquilo. Queria chegar a São Paulo como alguém que é expulso de sua casa. Eu me acalmei.
Lembrei daquela história que quando o rio chega no mar, entra em desespero. Porque o rio é pequeno e quando chega no mar, é engolido. Mas quando chega no mar, descobre que o mar é feito de rios e que esses rios se transformam em mar.
Dois caras
Saí, meditando. Quando cheguei na escadaria na Catedral da Sé, encontrei uns rapazes, comendo bolachas sem nada. Minha irmã [Rita], que é religiosa, tinha me dado um suco que eu não queria. Ofereci para eles – aceitaram. Sentei com eles. Tinham mais de 20 anos de rua. Disseram que não usavam droga, porque a vida já era muito difícil.
Pedi para que me acolhessem na rua, só por uma semana, depois me viraria. Pensaram. Disseram que eu tinha uma experiência de rua e que conheciam o projeto “Restaura-me”; e que eu devia fazer um trabalho voluntário.
Deixaram dormir com eles – mas eu tinha meu papelão. Me avisaram que teria de esperar até depois das 22 horas, porque eles dormiam na frente de um estacionamento. Dia de chuva tem poucas marquises. Fui com eles, na Rua Boa Vista. Fui no banheiro, na Estação São Bento. Quando voltei, eles tinham guardado para mim um prato de sopa, pão, um copo de chocolate quente.
Os dois caras se chamam Luís Ricardo, 47 anos, e Francisco, 61 anos. Como o espaço é pequeno, você dorme de atravessado. Se dormir de comprido, cabem poucas pessoas. Pega um pouco da rua com os pés, mas muita gente consegue dormir.
Restaura-me
No dia seguinte fui no projeto [o “Restaura-me”]– era Semana Santa. Me apresentaram. Achei o trabalho muito humano. Nos projetos de São Paulo, chamam os acolhidos de “filhos” ou de “irmãos”. A vida inteira eles querem ser filhos, procuram um pai. Nesse projeto passam 800 pessoas por dia, tem cinco educadores, muito difícil ter um conflito. Eles ficam durante o dia, tomam café da manhã, almoçam e saem 16 horas.
Não fiquei à paisana [no projeto]. Alguns sabiam da chácara [dos Meninos de 4 Pinheiros]. Pedi para ficar uma semana observando o trabalho deles, depois me ofereci para fazer um trabalho com os educadores deles e aplicar a Pedagogia dos Sonhos. Eles relutaram, hoje é a oficina mais concorrida.
Fico na biblioteca. Passo o dia com eles, das 9 às 16 horas, escuto muito eles, me mandam casos difíceis. Bolei um projeto de vida para motivar eles. Eu trato pelo nome, porque na rua eles têm apelido. Digo que o maior patrimônio é o nome. Peço que cada um diga o nome, o sonho que tem e o que precisam fazer para realizar esse sonho.
Faço contação de histórias. Depois paro, e cada um conta a sua história, continuando. A última vez disse que queria que eles se abraçassem. Eles se abraçaram. Ficaram 15 minutos. Sabe por quê? Porque eles não recebem abraço. E já que gostaram tanto do abraço, convidei a pedir perdão para o próprio corpo. Um falou que queria pedir perdão para o corpo pela quantidade de facadas que recebeu; outro pelos tiros que recebeu, e uma mulher falou do marido que matou quatro filhos dentro da barriga dela, porque bebia...
Praça do Patriarca
Moro na Rua São Bento, Praça do Patriarca. Levanto às 7 horas. Os projetos abrem às 8 horas. No albergue fiquei quatro horas na fila. Entrei numa fila para pegar uma toalha, depois entrei numa fila para guardara as coisas, depois a fila do banho. E tem de levantar às 5 da manhã, sendo que o projeto abre às 8 da manhã.
Tenho um papelão, um cobertor. Moro numa maloca, que é como eles chamam. Agora eu sou um maloqueiro. Tem mais 80 pessoas. Tem um senhor que bebe. Mora ali faz oito anos. Ele veio de Alagoas. Ele e o irmão bebem o tempo inteiro e cuidam do meu papelão e da coberta. A gente ocupa uma quadra inteira.
Quem coordena o lugar onde eu fico é o pessoal da Praça da Sé, que é da pesada. Eles me disseram que não me queriam dormindo ali. Contam a dedo os que podem dormir ali. Pedi, fui ficando. Eu pegava um livro de salmo à noite e rezava. Me perguntaram se podiam rezar junto – disse que sim. Todo dia, quando eu chego lá, eles dizem: “Vamos rezar”. Eles se acalmaram. Depois, cada um fala de sua vida, de sua caminhada. O dono da rua acabou dizendo que eu poderia ficar. Ele hoje mora num prédio ocupado. Diz que eu trago paz.
Escrevinhador
Quando alguém fala a sua história, reconstrói a própria história da vida. Hoje tem uma fila de gente que quer que eu escreva a história deles. Anoto num caderno. Tem vez que fico até duas horas da manhã. Enquanto tiver energia, vou fazer. Na maloca tem homens e mulheres, mulheres de idade. Criança não tem, mas elas aparecem para pedir comida. Calculo que escutei umas 30 histórias. Quero fazer um livro.
Tenho a semana bem ocupada. Consigo descansar, porque estou tão cansado à noite... todos os dias vivencio histórias tristes. São essas histórias que me dão força. No mínimo, preciso ouvir essas pessoas com qualidade. Enquanto tiver energia vou escutar. Essas histórias me acalmam e me incentivam a seguir essa caminhada.
Querem que eu escreva a história de vida. O importante é escutar – e escutar sem nenhum julgamento. Quando a gente julga, esquece de amar. Tem vida na rua. Muito própria, dinâmica. O morador de rua só fala a verdade depois da meia-noite. Uma freira me falou. Eles têm de mentir para conseguir alguma coisa. A noite, com a rua sem ninguém, eles falam a verdade.
Na rua
A sopa é maravilhosa. Vem de um grupo chamado “Reintegrando a turma da rua”. Já falei que a sopa é gostosa, mas que não educam a colocar os pratos no lixo. Me dispus a ajudar. Tento levar pelo menos faísca de esperança.
Somo 33 anos de movimento social, e tinha coisa que eu não sabia. Quanto mais se sofre, mais se aprende. Tem sido uma escola de vida, de generosidade. Hoje para mim tudo está bom. Esses 33 anos foram para viver esse dia.
Cheguei a ficar dois dias sem comer e me deu até dor de cabeça. Fim de semana é mais difícil. Ganhei uma marmita – e dois meninos me pediram. Repartimos. Solidariedade – no meio dos pobres ninguém faz jejum, ninguém passa fome. Sempre tem uma bolacha, um suco.
Agora não consigo dormir em colchão, durmo no chão.
Trabalho e cato lata, dá dinheiro, faço uma parceria. Brigam para ficar do meu lado.
Violência
Um dia teve uma briga e eles descobriam o rosto das pessoas. Mês passado, houve quatro mortes na Praça da Sé. Um deles eu conhecia. Colocaram dois dentro de um freezer. Um amigo da rua me falou que tinha medo de dormir. Não tenho. Se Deus me levar eu já vivi mais de meio século.
O segredo [para se proteger] é só cobrir bem a cabeça, para mostrar que não viu nada. É a ciência da rua – claro. Tem de ficar onde tem segurança, perto da polícia, da guarda municipal. Uma coisa bem importante é não andar sozinho.
É muito triste a depressão dos moradores de rua. Estão num monte de gente, mas remoendo os problemas. Noto muito a solidão.
Cracolândia
Fiquei um mês no Centro e disse que queria ir na Cracolândia – me disseram que era perigoso. Disse “gente, não posso virar as costas para os meus irmãos.” Uma congregação religiosa me chamou para uma missão lá, “Fraternidade é o caminho”, dos franciscanos. É parecido com a Toca de Assis. Fui antes (do combinado).
Quando cheguei lá, entrei em desespero. Eles ocupam uma rua dos dois lados. Hoje tem grupos na Cracolândia que trabalham com R$ 20 - R$ 10 eles fumam as pedras, e R$ 10 eles vendem. Assim consomem menos e conseguem trabalhar para o tráfico.
Quem não tem esse capital de giro, vende bagulhos – celular, um copo de suco, sapato. Tem um comércio muito grande entre eles, para que possam comprar as drogas. Daí tem roubo, tem mulher chorando. Eu vou numa universidade e só vejo gente branca. Eu vou na Cracolândia e vejo só negros, a maioria.
Fiquei pensando que nada que eu fiz na minha vida cabia ali. Voltei desesperado para a minha maloca. Achei que não tinha feito nada de bom, por não conseguir me aproximar de quem mais precisava de mim. À noite me acalmei. A ficha foi caindo. Tenho três ferramentas que eu trabalho na Cracolândia – o sorriso, o abraço, o beijo.
O sorriso eu aprendi com a Madre Teresa de Calcutá, “mesmo que o teu pé sangre na caminhada, o teu rosto ainda pode sorrir”. Eu vi que aqueles rostos não sorriam. Do abraço, eu vivi várias situações aqui na chácara. É da psicologia: quando a pessoa está nervosa, abrace. O coração quente aquece o coração frio.
A missa mais comovente é a da Cracolândia. O padre [Júlio Lancelotti] diz que ali é literalmente na Igreja da Pedra. Três mil pedras ligadas. Só tem pedra acesa. Acendem durante a missa. O padre diz que a gente tem de rezar por eles, porque não sabem rezar. No meio da missa eles dizem: “Padre, roubaram a minha coberta”. Na Cracolândia, até os cachorros são tristes, porque eles vêm o dono morrer e não conseguem fazer nada.
Depois da missa, fui usar as minhas ferramentas. Encontrei um homem bem debilitado, ofereci um abraço. Ele me disse que eu não ia abraçar porque ele literalmente morava no inferno. Mesmo assim dei o abraço e o beijo.
O importante é estar lá, ser aquela presença humana e solidária, sem julgar. Vou lá quase todo dia. Sexta, sábado e domingo, vou mais. A Cracolândia fica na Luz. Hoje está reduzido a uma quadra, dos dois lados. Tem muitas congregações e igrejas evangélicas.
No início, a Cracolândia não estava nos meus planos. Os mais lúcidos vão no projeto tomar banho e vão comigo na Cracolândia. Me apresentam as pessoas. O difícil são os traficantes. Perguntam o que eu estou fazendo lá e dizem que eu tenho de fumar três pedras, para me tornar um dependente. Ou roubam a gente.
Política
Fiz um pacto com o Ministério Público de São Paulo. Me disseran que eu vou ser os olhos do Ministério Público. É desumana a forma como os equipamentos nos tratam. Tem uma fila para entrar, e outra fila do café, a fila do banho, a fila do tíquete para almoçar. O dia se reduz a ficar na fila. Tem de humanizar esses espaços. E tem tuberculose, e tem o problema de dormir em 50 pessoas num quarto.