Nos 20 anos do Superior Tribunal de Justiça (STJ), completados neste mês, apenas cinco mulheres ocuparam o posto de ministras da Corte ao passo que 79 homens já chegaram ao STJ. Entre essas cinco representantes femininas, uma paranaense, de Guarapuava: Denise Martins Arruda. Juíza desde 1966, ela saiu do Tribunal de Justiça do Paraná, em novembro de 2003, para ser a primeira magistrada estadual paranaense no STJ. Em mais de cinco anos na Corte, a ministra julgou cerca de 53 mil processos. A marca é impressionante, mas os processos não param de chegar o número de casos julgados pelo STJ subiu cerca de cem vezes desde sua criação (em 1989, foram 3.711; no ano passado, 354.042). "Fazemos o que é possível, mas não se consegue ficar zerada", reconhece.
Mesmo depois de mais de 40 anos aplicando o Direito, a ministra Denise Arruda se diz "a rainha da dúvida", por atuar com o máximo de prudência ao analisar quem tem razão em cada caso. "A tarefa de julgar é complicada. Quando as coisas são pretas ou brancas, é fácil. A zona cinzenta é que difícil", explica. Apesar de estar a apenas dois anos da aposentadoria compulsória, em 2011, pensa em parar antes. "Quero me aposentar voluntariamente". Confira os principais trechos da entrevista concedida pela ministra à Gazeta do Povo.
Na atual composição, dois ministros do STJ são oriundos do Paraná: a sra. e o ministro Felix Fischer (alemão naturalizado, chegou à Corte depois de atuar no Ministério Público do Paraná). Rio Grande do Sul e Santa Catarina têm três ministros cada. Há alguma razão especial para termos a menor representação no STJ entre os estados do Sul?
A Justiça do Paraná tem muitos valores que poderiam tranquilamente estar no STJ. Muitos não têm interesse de vir para cá, por questões familiares, por exemplo, embora tenham conhecimento jurídico para estar aqui. E acho que os paranaenses são tímidos. Não se voltam a isso. Porque, quem quiser concorrer, concorre. Às vezes, há tribunais que mandam dois, três, quatro, cinco desembargadores para concorrerem. Há muitas etapas complicadas e talvez isso desestimule: precisa vir ao STJ, apresentar currículo, visitar todos os ministros... Depois disso, há uma lista tríplice, que vai para o Ministério da Justiça. Aí é um aspecto político. Eu concorri com dois desembargadores paulistas. O Ministro da Justiça era o Márcio Thomaz Bastos [que é paulista]. Pensei que não seria escolhida. Mas, politicamente, o Paraná me apoiou muito fortemente.
A sra. foi a primeira mulher a ocupar um cargo de direção no Judiciário paranaense e apenas a quarta mulher a chegar ao STJ (hoje, são cinco). Foi preciso abrir mão de muita coisa? Como a sra. vê a participação da mulher no Judiciário?
É preciso gostar do que se faz. Não acho que foi por causa do trabalho que não me casei, que não tenho filhos. Hoje, as estatísticas de gênero da magistratura mostram que, em primeiro grau de jurisdição, onde começa a carreira, tem mais mulheres do que homens. A mulher gosta do Direito. No Pará, por exemplo, os homens são minoria no Tribunal de Justiça [há 21 desembargadoras e apenas 9 desembargadores já no Paraná, há mais de cem desembargadores para pouco mais de dez desembargadoras]. As mulheres estão fazendo carreira. Quando eu cheguei na magistratura, não havia muitas mulheres. Hoje é diferente.
A sra. está a dois anos da aposentadoria compulsória. Tramita atualmente, no Congresso, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n.º 457, de 2005, que eleva a idade da aposentadoria dos ministros do STF e tribunais superiores de 70 para 75 anos. A sra. gostaria de se aposentar mais tarde?
Em relação à aposentadoria compulsória, tenho a dizer que não quero chegar lá. Quero me aposentar voluntariamente. Não tenho muito tempo para resolver, mas venho pensando nisso há bastante tempo. Quanto à PEC, acho que estabelecer uma distinção para ministros de tribunais superiores é uma exceção indevida, sob minha ótica. Sou contra. Acho que seria um "privilégio".
E o que a sra. pretende fazer depois da aposentadoria?
Quem sabe eu vou ter algum hobby, o que não tive até agora. Vou inventar alguma coisa para fazer. Em relação a trabalho, não pretendo fazer nada. Vejo uma questão ética aí muito significativa. Tem outras pessoas que fazem isso [trabalham com Direito depois da aposentadoria como magistrados] com muita naturalidade, mas eu não quero isso para mim.
A sra. tem mais de 40 anos de magistratura. O que mudou no Judiciário nas últimas quatro décadas?
O Judiciário toda a vida esteve em crise, em se tratando de morosidade, de dificuldades, de acesso à Justiça. Mas houve uma mudança muito grande, na magistratura como um todo, fruto da Constituição Federal de 1988. Foi a Constituição que trouxe valores muito significativos, como a dignidade da pessoa humana, por exemplo, e elevou uma série de direitos à categoria de fundamentais. A Constituição deu enfoque sobre a cidadania.
Ao dar mais acesso à Justiça, a Constituição não acabou causando um problema ao Judiciário, que teve de conviver com muito mais processos?
Mas isso é muito bom, ainda que o Judiciário não estivesse preparado para essa avalanche de processos. A Constituição provocou uma mudança de mentalidade na cabeça do juiz, passou a haver uma cobrança social, política. O Judiciário foi se adaptando à essa avalanche, porque a cidadania não quer esperar.
Para combater esse inchaço no STJ, criou-se a Lei dos Recursos Repetitivos (11.672/2008). A seu ver, qual será o impacto da Lei dos Recursos Repetitivos para a desobstrução do STJ?
Eu tenho uma certa dúvida a respeito da Lei dos Recursos Repetitivos. Só o tempo vai nos mostrar. A área jurídica é de difícil mudança. Acho que a proposta das causas repetitivas é muito boa, porque nós temos muitos processo semelhantes, em que se discute a mesma matéria, praticamente a mesma coisa. A jurisprudência levada à primeira instância pode mudar muito a primeira instância. Então, a proposta é muito boa, mas não sei se vai ter o resultado tão otimista que se espera.
Por quê?
Temos a cultura do recurso. É muito comum ouvir: "Eu vou até o Supremo com a minha demanda". É uma mentalidade da área jurídica em geral.
Faz mais de um ano que o STJ, pela primeira vez em sua história, não aceitou os nomes indicados pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para a vaga de ministro reservada aos advogados pelo quinto constitucional. O caso tramita no STF. O que a sra. pensa disso?
A votação foi em fevereiro do ano passado e eu não estava em Brasília, não participei da votação. Pelo que ouvi falar, os nomes da lista eram muito jovens e não teriam uma larga experiência na área jurídica. Foi essa a questão. Acho difícil de avaliar. Não tenho ideia do que vai ocorrer no STF. Eu, particularmente, acho o quinto constitucional uma belíssima coisa dentro dos tribunais, porque vem uma mentalidade diversa daquela dos juízes. Acho que o advogado pode trazer ideias que melhorem o trabalho do Tribunal.
A sra. está há mais de cinco anos no STJ. Algum dos milhares de processos que a sra. já julgou lhe chamou atenção especial?
Eu lembro que eu julguei, recentemente, um caso muito interessante do Paraná, por sinal, que era uma briga entre o Estado do Paraná e o município de Curitiba, em relação a ICMS e ISS sobre provedores de acesso à internet. Que tributo incidiria? Se seria o ICMS, e quem recolheria seria o Estado; ou se seria o ISS, e quem recolheria seria o município. Depois de um longo estudo, cheguei à conclusão que ninguém teria direito a esse tributo, porque o provedor de acesso à internet não é um meio de comunicação propriamente, é um acessório ao meio de comunicação. Então, nesse caso, nenhum ganhou.
O STJ completa 20 anos neste mês. Que balanço a sra. faz do papel da Corte?
O Tribunal está correspondendo ao seu papel Constitucional. É um Tribunal que tem o seu valor exatamente porque julga as questões do cidadão. O volume é enorme, mas estamos fazendo aquilo que o cidadão precisa. Acho que o STJ tem bastante a crescer ainda, porque o Direito é dinâmico. Outras coisas aparecerão para análise do Tribunal, muito mais processos, e o desafio para as novas décadas é muito grande porque o tribunal é pequeno, tem apenas 33 juízes.
A sra. vê uma possibilidade de aumento no número de ministros?
Acho que não só uma possibilidade, mas especialmente uma necessidade. Trabalhamos no limite de nossas forças. O número de processos tem aumentado muito, com o mesmo número de ministros.
Boa parte da classe jurídica está se mobilizando contra a PEC n.º 12, que vem sendo chamada de "PEC do Calote" - entre outras coisas, aumenta o prazo para o pagamento dos precatórios. Qual é sua opinião a respeito?
A PEC 12 foi, inclusive, objeto do discurso do Cézar Britto [presidente nacional da OAB], na sessão dos 20 anos do STJ. Ele foi muito contundente. E acho que ele tem razão. Com a Constituição de 1988, as dívidas dos estados puderam ser parceladas em até 10 vezes. E nós sabemos que os estados já não estão pagando os precatórios ou, se estão pagando, não estão pagando pela ordem. Isso é gravíssimo, em relação ao que já foi decidido pelo Poder Judiciário, porque só sai o precatório depois do processo transitado em julgado. E o respeito à coisa julgada é essencial para o Judiciário.