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Trânsito

Tragédias expressas

Veja mais dados sobre os motoboys |
Veja mais dados sobre os motoboys (Foto: )
Para os motoqueiros Waldemar, Adílson, Joacir, Alexandre e Paul, de Curitiba, acidente é rotina |

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Para os motoqueiros Waldemar, Adílson, Joacir, Alexandre e Paul, de Curitiba, acidente é rotina

Rodrigo Board, de Cerro Azul, personagem da matéria da Gazeta em 16 de maio: geração de mutilados. |

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Rodrigo Board, de Cerro Azul, personagem da matéria da Gazeta em 16 de maio: geração de mutilados.

Dinalva Monteiro cuida do irmão Dirceu, em Colombo |

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Dinalva Monteiro cuida do irmão Dirceu, em Colombo

Rodrigo Cardoso, no Hospital do Trabalhador: vou voltar |

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Rodrigo Cardoso, no Hospital do Trabalhador: vou voltar

Rached Hajar Traya, no Hospital do Trabalhador: um médico que estuda mobilidade |

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Rached Hajar Traya, no Hospital do Trabalhador: um médico que estuda mobilidade

Se perguntarem a um motoboy qual é o maior inimigo da categoria, é bem provável que responda "os carros". Não é de hoje que neanderthais sob duas e quatro rodas se digladiam nas pistas de asfalto das grandes cidades. Mas haverá quem dê uma resposta mais precisa: "Nosso maior inimigo é a pizza". Bingo.

Nesse momento, alguém pode estar pedindo por telefone uma "pepperoni" ou uma "tomate se­­­co com rúcula" – "para ontem". O resto da missa já se sabe. "O mesmo sujeito que buzina para a gente no trânsito é o que liga para a pizzaria exigindo que seu pedido seja entregue em 20 minutos", protesta Alexandre Massuchetto, 25 anos, motofretista – nome oficial da atividade desde sua regularização em julho de 2009.

Alexandre é um espécime típico da categoria. É jovem, ganha um salário modesto, flerta com a informalidade e tem cicatrizes nas pernas conquistadas num acidente grave, no seu caso, ocorrido próximo ao Terminal da Vila Oficinas. "Fiquei com medo de virar um vegetal", relembra, em meio a um grupo de amigos que se preparavam, mês passado, para iniciar um curso intensivo de direção e primeiros socorros oferecido pelo sistema Sest/Senat, no Boqueirão.

Chega a ser mórbido. Waldemar Júnior, 28, um ano de "bico" noturno como entregador, é o único da turma que ainda não beijou o asfalto. "Não tem motoboy sem lesão", desafia Joacir Rabelo dos Santos, 31, em meio à exibição de dedos tortos e marcas de enxertos nas panturrilhas e coxas. "Hoje mesmo vi um motoqueiro embaixo de um ônibus...", solta outro, dando início à contação de causos.

Se entre os mais de cem mil motoqueiros de Curitiba é raro encontrar um não-acidentado – ainda que de raspão –, mais raro ainda é quem não tenha pelo menos ouvido uma história sobre pernas amputadas e sequelas mentais irreversíveis provocadas pela boleia. Tão surpreendente quanto esse circo de horrores é saber que – apesar do gravíssimo problema de saúde pública provocado pela ascensão dos motoboys e afins – inexistem dados específicos sobre o assunto. Tem acabado em pizza, como se diz.

As informações são genéricas. De acordo com o Instituto Brasi­leiro de Segurança do Trânsito, o país teria algo como 18 milhões de motos, veículo que gera 10 mil mortes por ano e 500 mil feridos. Perto do volume de carros, as motocicletas não fazem um verão – são 10% da frota de veículos. Mas ao se levar em conta os estragos que provocam nos seus condutores, a situação se inverte: correspondem a 30% dos acidentes, a 13% das vítimas fatais.

Pesquisas do Denatran e do Ipea indicam que a chance de um acidente com moto levar a óbito é de 71%, dez vezes mais do que o automóvel. O mesmo se diga para a geração de sequelas. Ainda que sob suspeita de chutômetro, o consenso é que 70% dos sobreviventes venham a carregar por toda a vida os efeitos de sua queda. Apenas em 2008, gastou-se R$ 8 milhões para tratar das vítimas. O que não tem impedido o surgimento de um exército de mutilados.

É só fazer a conta: 15% dos feridos acabam internados. Se desses, a maioria ficar com marcas profundas, só no Paraná, a cada ano, 1,5 mil pessoas – leia-se homens jovens e pouco instruídos, na sua maioria – passam a carregar alguma forma de deficiência.

"Eu sei"

"Sou ex-motoqueiro e sei. As situações de ‘quase’ acidente são diárias. Uma hora acontece. E o parachoque do piloto é a própria testa. Nem precisa dizer mais", ilustra o fisioterapeuta Murilo Cezar Bredt, 36 anos, professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) integrado à clínica modelo de reabilitação mantida pela universidade.

O cenário em que Murilo trabalha – entre o Prado Velho e a Linha Verde – ilustra bem o problema. A dizer: nem todo motoqueiro é motoboy. Nem há como saber quantos motoboys existem. Entre os pilotos, diz-se que "fulano bate caixinha", expressão usada para definir uma atividade extra, feita de gorjetas e entregas a jato, quase sempre à noite. São justamente esses franco-atiradores que acabam formando filas nos centros de fisioterapia gratuitos, de onde nunca se livram antes de seis meses.

Ao final desse período, têm noção exata do ponto em que estão: são moços, são pobres, sem carteira registrada e deficientes, dependentes da mãe, a quem cabe trocar fraldas, dar alimentos à boca e fazer das tripas coração para conseguir remédios contra escaras. Um tubo de óleo Dersani pode chegar a R$ 80. E dá para uma vez só.

Exagero? É certo que nem todos os motoboys acidentados acabam na rua da amargura. Mas a probabilidade de que isso aconteça é cada vez maior. Na última década, a frota de motos em Curitiba aumentou 175%. A participação desses veículos em acidentes fica na casa dos 30% do total de ocorrências. O saldo beira meia dúzia de mortes por mês. E uma incógnita para o futuro. Quantos saíram com marcas para sempre? Eis a questão.

No mês em que a reportagem da Gazeta do Povo conversou com profissionais de saúde e vítimas de acidente, a conclusão mais flagrante é que, por força de sua natureza, as motocicletas deixam da­­­nos a curto, médio e longo prazo. Muitos saem andando de seus sinistros. Até se dar conta da perna pendurada. Com o passar dos anos, o impacto da batida pode trazer surpresas, como convulsões, alterações de comportamento, artroses aceleradas e danos à audição e à visão.

Alguns centros de saúde já se debruçam sobre esse fenômeno. E fazem um alerta, pedindo campanhas de conscientização tão ou mais agressivas quanto as feitas para combater o tabagismo. "Diante de um paciente traqueostomizado muita gente mudaria de atitude", aposta a fisioterapeuta Andrea Pires Müller, coordenadora do curso de Fisioterapia da PUCPR.

Andrea divide a reivindicação com Murilo – que já viu, pasmo, um motoboy fazendo entregas com gesso na perna; e com o veterano Luiz Bertassoni Neto, 53, também da PUCPR. A conversa com os três é um início de campanha para evitar o massacre dos motoboys: eles falam de lesão modular, fraturas no fêmur e de danos à tíbia e à patela com a naturalidade de quem vai à feira. É o bastante para concordar com Bertassoni: "A atividade de motoboy virou um mal do século 21."

A galope

A dez quilômetros dali, no Hospital do Trabalhador, o século 21 vai a galope. Nos últimos três meses, a instituição – que é referência em trauma e tem o banco de dados mais completo do estado – passou a discriminar entre os acidentados por moto, quem é motoboy. Até o final do ano, a atitude da administração vai permitir saber o histórico dos internados e, por certo, confirmar que o aluvião de motofretistas está formando uma geração de inválidos, à semelhança do que acontece nos países que entram em guerra.

O homem por trás da inovação é o cirurgião-geral Rached Hajar Traya, 48, coordenador do Pronto-Socorro do Hospital do Traba­lhador. Com mais de uma década de casa, o médico assistiu – pelas portas de entrada na Rápida do Portão e da República Argentina – à chegada, cada vez mais expressiva, desse novo personagem da tragédia urbana.

À semelhança dos fisioterapeutas da Linha Verde, empenhou-se em desamarrar o nó. Hoje, na mesma medida em que fala de questões médicas, discorre sobre mobilidade urbana, consumo, emprego informal e insensibilidade social. "Os motoboys foram satanizados. Mas eles podem cair sozinhos, bater num poste. Estamos diante de um problema de grandes proporções. Essa questão não se resume a um capacete na cabeça. Ela passa pela capacidade que a moto tem de chegar antes." Eis o ponto.

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