O Brasil gasta por ano R$ 184,3 bilhões em mobilidade, revela estudo da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP). Desse montante, R$ 10,3 bilhões vão para a manutenção da infraestrutura viária, cabendo dessa fatia R$ 2,4 bilhões ao transporte coletivo e R$ 7,9 bilhões ao transporte individual, em especial carros e motos. Ou seja, o meio privado de locomoção recebe do poder público 77% dos investimentos. Significa que de cada R$ 10 investidos no sistema viário, pouco mais de R$ 2 vão para os meios públicos e quase oito privilegiam o transporte individual, embora este seja usado em apenas 31% dos deslocamentos dos brasileiros.
Para Adolfo Mendonça, coordenador técnico do estudo, o relatório evidencia que, apesar de o transporte coletivo ser mais eficiente em muitos aspectos, não é priorizado pelo poder público e acaba defasado, afastando o usuário. "A cidade brasileira foi adaptada para o uso do automóvel desde a metade do século passado, fazendo com que sua utilização fosse prioridade nos sistemas viários."
O mesmo aconteceu em Curitiba, conclui o arquiteto e urbanista Luiz Henrique Fragomeni, ex-diretor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc). Durante décadas a cidade foi referência em mobilidade pelo seu desenho viário, baseado no sistema trinário de eixos estruturais com vias exclusivas para o transporte coletivo. Esse planejamento aconteceu numa época em que o espaço urbano era favorável às experimentações.
De lá para cá, no entanto, a população triplicou e o espaço urbano ficou mais engessado. "A velocidade com que se produziu espaço para o transporte coletivo até o fim da década de 1980 não foi a mesma velocidade com que se produziu espaço para o automóvel a partir da década de 1990", diz. Além do crescimento econômico e a ampliação da frota de veículos particulares, Fragomeni reputa os benefícios dados ao transporte individual à pressão de grupos sobre o poder público.
Dinheiro não falta
Os investimentos públicos em infraestrutura viária são vultosos, constata a ANTP, mas não priorizam o transporte coletivo. Carros, motos e ônibus compartilham boa parte da estrutura, mas ela não é planejada para a maior eficiência dos meios coletivos, tampouco incentiva o uso de outros modais, como a bicicleta. Some-se a isso uma gigantesca frota de veículos particulares e tem-se um sistema exaurido.
Curitiba retrata bem o cenário descortinado pela pesquisa da ANTP: espaço viário sobrecarregado e a destinação de boa parte dos recursos para a solução imediata de deficiências do transporte e do trânsito. A cidade que já despontou como referência de mobilidade graças ao sistema BRT (Bus Rapid Transit), hoje enfrenta as consequências da saturação do modelo e da ausência de investimentos em outros modais. Não por falta dinheiro.
Segundo a Urbanização de Curitiba S.A. (Urbs), neste ano já foram gastos R$ 284 milhões em pavimentação de vias, enquanto o sistema integrado de mobilidade recebeu R$ 61 milhões para manutenção e ampliação . Outros R$ 152,7 milhões estão destinados ao sistema viário a maior parte para pavimentação e conservação de ruas.
A prefeitura prevê investimentos de R$ 5 bilhões em mobilidade nos próximos anos, R$ 4,6 bilhões só para o metrô. O aumento da capacidade do sistema expresso (BRT) custará R$ 194 milhões, a revitalização da linha Inter 2 demandará R$ 102,5 milhões. A Linha Verde está orçada em R$ 277,3 milhões e o Contorno Sul, em R$ 400 milhões. Com exceção do metrô, as duas maiores obras viárias não são específicas para transporte coletivo, embora também vá atendê-lo.
O secretário municipal de Planejamento, Fabio Scatolin, diz que os projetos viários são desenvolvidos em benefício do transporte coletivo, mas reconhece a defasagem. "Nos últimos 10 anos, as obras viárias de Curitiba não trouxeram inovação para o transporte coletivo. Além disso, houve um crescimento muito grande do transporte individual." E aposta na multimodalidade como solução. "É preciso administrar o sistema viário de modo que todos os modais alcancem o máximo de efetividade. Para isso temos o metrô, a ampliação do sistema expresso e o Plano Diretor Cicloviário."
Aposta deve ser na integração de modais
Dispor de recursos não é suficiente para solucionar os entraves da mobilidade. O arquiteto e urbanista Luiz Henrique Fragomeni, ex-diretor do Ippuc, critica o que chama de "personalidade viária" de Curitiba. A cidade de 40 anos atrás era mais arrojada. "Hoje, se perdeu a estratégia de transporte que orienta para um desenvolvimento polinuclear. Algumas obras novas concentram impacto, densidade e poluição nos eixos estruturais, onde já existe essa situação."
Ele também reconhece que, mesmo executadas em outros termos, obras como a Linha Verde e o metrô não vão desafogar o trânsito enquanto o desenvolvimento permanecer concentrado na cidade. "É preciso ter controle sobre os empreendimentos geradores de tráfego, pois a infraestrutura viária permanece mais ou menos a mesma dos últimos 30 anos. Não dá para liberar densidades demográficas sem ampliar espaço para o transporte."
Fragomeni defende a multimodalidade e, principalmente, de uma integração metropolitana efetiva na qual os 14 municípios da região contribuam com orçamento para um sistema viário que, afinal, atende à Grande Curitiba.Ele também acredita ser fundamental pensar em alternativas de modais para aproveitar a estrutura dos corredores, como a construção de túneis em cruzamentos estratégicos, liberando o tráfego das vias; e implantação de Veículos Leves sobre Trilhos (VLT), obra menos custosa e mais abrangente que o metrô.
Cultura do carro
Para o engenheiro Ricardo Bertin, a equação da mobilidade curitibana é composta pela densidade de automóveis, pela infraestrutura viária deficiente e por um aspecto cultural muito forte. "O carro é o principal sonho de consumo do brasileiro. De outro lado, a expansão da infraestrutura viária é limitada. Temos, então, um problema de crescimento assimétrico."
A única maneira de favorecer o transporte coletivo, diz ele, é alterar a percepção de ganho do usuário. "Somente quando o usuário perceber que é vantajoso optar pelo transporte coletivo, em termos de dinheiro, tempo, segurança, conforto e acessibilidade, ele irá deixar seu veículo na garagem."
As soluções possíveis apontadas por Bertin são a ampliação da capacidade do transporte coletivo, por meio, também, da implantação de um novo modal, como o metrô; o planejamento do espaço viário e o incentivo aos meios individuais alternativos, como bicicletas e carros elétricos. Alternativas como as vias calmas, ampliação da frota de ônibus e de itinerários e sincronização de sinaleiros seriam apenas paliativos.