O surto de zika e a possível relação do vírus com casos severos de microcefalia colocaram o Brasil em alerta não apenas por se tratar de uma epidemia de dimensões e consequências imprecisas, mas porque confrontam a estrutura de saúde disponível para acolher crianças nascidas com a malformação.
Especialistas observam o aumento dos casos de microcefalia com apreensão (desde outubro do ano passado foram confirmados 745 casos) e apontam falhas na rede de atendimento existente hoje – desde número insuficiente de centros de referência até a dificuldade de acesso ao serviço público e gratuito, passando pela inviabilidade do tratamento particular devido ao custo elevado.
Brasil tem 1,5 mil unidades de reabilitação
A preocupação tem razão de ser. A estrutura de atendimento demandada por uma criança com microcefalia incluí uma equipe multidisciplinar composta por médico fisiatra, neuropediatra e neurologista, geneticista, fisioterapeuta, fonoaudiólogo e terapeuta ocupacional.
Para uma criança com danos neurológicos menos graves, o não acesso a recursos médicos pode sacrificar a chance de ela ser independente. Já para uma criança com danos severos, não receber tratamento pode significar a morte.”
O médico geneticista Theoharis Sfakianakis trabalha no hospital Cruz Verde, em São Paulo – único hospital do país especializado e exclusivo para o atendimento de pessoas com paralisia cerebral, incluindo microcefalia –, e explica que a estimulação precoce e o acompanhamento são fundamentais para que a criança consiga desenvolver todo o potencial que sua condição permite.
“A falta de atendimento não passa sem consequências. Para uma criança com danos neurológicos menos graves, o não acesso a recursos médicos pode sacrificar a chance de ela ser independente e conseguir um emprego em programas de inclusão, por exemplo. Já para uma criança com danos severos, não receber tratamento pode significar a morte. A assistência é determinante do futuro que ela vai ter.”
Tratamento pode custar até R$ 5 mil por mês
De acordo com o médico, o ideal é que o tratamento seja realizado durante toda a vida do paciente, mas a fase entre zero e seis anos é o período de maior necessidade de acompanhamento e estímulação. As crianças devem realizar atividades de estímulo supervisionadas por profissional de duas a três vezes por semana e, em casa, todos os dias.
Sfakianakis reconhece que o tratamento ideal tem custo bastante elevado – cerca de R$ 5 mil reais mensais com suporte de enfermagem para crianças acamadas e um pouco menos, algo em torno de R$ 3 mil mensais, para tratamentos sem enfermagem.
No Cruz Verde, o atendimento é gratuito e todas as enfermarias estão lotadas. Vivem no hospital 204 pacientes com graus e tipos diferentes de paralisia cerebral, muitos deles foram abandonados pelas famílias há anos; outros 20 pacientes frequentam o hospital para tratamento semanal. Segundo Sfakianakis, cerca de 80% dos pacientes tem algum grau de microcefalia.
O custo de manutenção do hospital é de aproximadamente R$ 15 milhões anuais e os pacientes internados custam, em média, R$ 3,7 mil mensais para a instituição.
Sfakianakis reconhece que, apesar da sobrecarga, os pacientes do Cruz Verde são privilegiados. O médico teme o aumento do número de casos de microcefalia severa no Brasil. “A perspectiva não é otimista. Serão necessários mais lugares como a Cruz Verde e governo e sociedade terão de se mobilizar, porque poderemos ter uma geração de pessoas com necessidade de reabilitação.”
Especialistas
O médico geneticista Theoharis Sfakianakis explica como atuam cada um dos profissionais envolvidos no diagnóstico e tratamento de crianças com microcefalia, mas destaca que as terapias são particularizadas conforme o grau da lesão:
Neuropediatra e Neurologista
Esses profissionais avaliam a extensão do comprometimento cognitivo; se há comprometimento motor associado e se a criança pode apresentar convulsão ou epilepsia. A base do diagnóstico é definida por esses médicos, que prescrevem as terapias e medicação necessárias.
Fisiatra
Responsável pelo programa de estimulação precoce. É ele quem vai avaliar se a criança apresenta lesões motoras crônicas e incapacitantes e indicar o tipo de fisioterapia adequada, além de outras terapias ocupacionais.
Geneticista
É o profissional que investiga a etimologia do quadro microcefálico, a fim de identificar a origem das lesões (infecções congênitas, causas genéticas, doenças etc.).
Fisioterapeuta
Esse profissional atua desde o nascimento para que o paciente desenvolva o máximo de independência motora. Ele vai trabalhar diretamente com as limitações físicas da criança, que vão desde dificuldade de sustentar o próprio corpo, sentar e caminhar até dificuldade de respirar.
Fonoaudiólogo
Responsável pela redução dos distúrbios de voz e fala. É ele que vai desenvolver exercícios para fortalecer a musculatura da região e melhorar a capacidade de deglutição; desenvolver a fala e a integração entre memória e linguagem. Tem papel importante na redução das dificuldades cognitivas e de aprendizado.
Terapeuta ocupacional
Esse profissional trabalha para integrar as habilidades de coordenação da criança, possibilitando algum grau de independência – conforme o grau de microcefalia, algumas crianças não possuem coordenação suficiente para manipular objetos, ou para vestir, comer e se deslocar sozinhas.
Brasil possui apenas 1,5 mil unidades de reabilitação
De acordo com o Ministério da Saúde, o Brasil conta com uma rede de 1.544 serviços de reabilitação – são unidades que oferecem atendimento nas especialidades da reabilitação, nas modalidades auditiva, visual, intelectual e motora. Desse total, 138 serviços são Centros Especializados em Reabilitação (CER), unidades que disponibilizam de duas a quatro especialidades. A manutenção desses serviços de reabilitação custa aos cofres públicos R$ 650,6 milhões anuais.
O ministério não soube informar quantas pessoas são atendidas pela rede de atenção especializada, mas já planeja sua ampliação. O Plano Nacional de Enfrentamento à Microcefalia, lançado no fim de 2015, prevê a habilitação de outros 64 Centros Especializados de Reabilitação (CER), que devem cobrir “vazios assistenciais” – regiões em que a oferta de Atenção Especializada não é suficiente. O custeio anual dos novos CER é estimado em R$ 135 milhões.
Consulta com especialista demora 6 meses
- Carolina Pompeo
Para o neuropediatra Alfredo Lhor, chefe do serviço de Neurologia Pediátrica do Hospital Pequeno Príncipe, em Curitiba, o maior desafio de crianças com microcefalia é o acesso ao acompanhamento especializado. “Não é possível definir um tratamento universal para todas as crianças com microcefalia e o tratamento multidisciplinar, como é recomendado, é inviabilizado porque não há integração entre hospitais e centros de reabilitação.”
Lhor também se mostra pouco confiante quanto à capacidade da rede pública. “Faltam profissionais, unidades, integração. Na rede pública, a consulta com um neurologista pode demorar até seis meses. No Pequeno Príncipe, se há urgência, conseguimos adiantar os exames. Mas o município não tem condição de cuidar de todas as crianças. Então o paciente vem, faz exames e diagnóstico, mas tem que voltar para a cidade de origem, onde não tem estrutura para o tratamento.”
No Paraná, 20 unidades oferecem atendimento especializado para crianças com malformações congênitas como a microcefalia. São cinco hospitais de referência
De acordo com Débora Bilovus, assessora técnica da rede Mãe Paranaense, não há fila de espera para atendimento nessa rede. “A criança com microcefalia ou outra malformação congênita já é inserida na rede de atendimento logo após o diagnóstico e toda semana abrimos agenda para a inclusão de novos pacientes.”
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