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Resumo desta reportagem:
- O desenvolvimento de um esfíncter artificial, que geraria melhora ampla na qualidade de vida de pessoas colostomizadas, foi interrompido em abril pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) após pressão de ativistas da causa animal.
- A última etapa de testes pré-clínicos consistiria na implantação do dispositivo em seis cães da raça Beagle, que seriam acompanhados durante um ano e, posteriormente, destinados à adoção.
- Após intervenção de uma ONG paranaense, a universidade negou que mantivesse vínculo com o projeto de pesquisa, o que é desmentido por documentos emitidos pela instituição recebidos pela reportagem.
- O protótipo está em desenvolvimento há 30 anos e foi finalista de duas premiações internacionais. Agora, com o projeto parado, o criador do dispositivo aguarda que outra instituição abra as portas para dar sequência aos testes.
A ação de ativistas da causa animal interrompeu o desenvolvimento de um dispositivo com o potencial de aumentar significativamente a qualidade de vida de pessoas colostomizadas, isto é, que devido a problemas no sistema digestivo possuem uma ligação do intestino grosso à parede do abdômen que permite a saída das fezes para uma bolsa coletora.
Há 30 anos em desenvolvimento, e atualmente na última fase de testes pré-clínicos que antecedem os ensaios com seres humanos, as pesquisas para a criação do dispositivo chamado Aico (sigla em inglês para Oclusor Ativo Implantável para Colostomias) foram suspensas em abril pela UEPG após pressão de uma ONG.
A intimidação contou até com ameaça de invasão de ativistas ao local onde estavam mantidas seis cadelas da raça Beagle, que participariam de um experimento indispensável ao avanço da pesquisa. A ONG, chamada Grupo Fauna PG, apresenta-se como um “grupo em defesa dos direitos animais e ambientais”.
O dispositivo em desenvolvimento se trata de um esfíncter artificial implantável que pode ser acionado por controle remoto e é capaz devolver a pessoas colostomizadas o controle da evacuação. Na prática, esses pacientes, que dependem do uso ininterrupto de equipamentos acoplados em seu abdómen, poderiam ficar livres das bolsas coletoras, que geram limitações e desconfortos diversos.
Só no Brasil há mais de 400 mil pessoas com diferentes tipos de ostomias, segundo estimativa do Ministério da Saúde. Mas a inovação teria o potencial de beneficiar um número ainda maior de pacientes de outros países, já que a comunidade científica internacional busca há décadas soluções semelhantes. Pessoas com outros tipos de ostomas, como a ileostomia (do intestino delgado), a gastrostomia (estômago) e a urostomia (bexiga) também poderiam ser beneficiadas futuramente com o mecanismo a partir de pequenas adaptações.
Mesmo assim, o projeto está estacionado desde 20 de abril, data em que a UEPG suspendeu o desenvolvimento da pesquisa, que estava sendo coordenada pelo criador do Aico, Josuê Bruginski de Paula. Médico e doutor em Engenharia Biomédica, o pesquisador foi docente da universidade paranaense por dez anos e deixou o cargo para se dedicar com exclusividade ao desenvolvimento do Aico.
Com a decisão, foram cancelados os testes pré-clínicos inicialmente agendados para os dias 21 a 23 de abril, que consistiriam na realização de uma cirurgia de colostomia nos cães, com a inserção do dispositivo para testar a efetividade da continência. Os animais seriam acompanhados durante um ano, e ao final seria feita nova cirurgia, de reversão da ostomia, da mesma forma que é feito com humanos. Ao final desse processo, os cães seriam encaminhados à adoção.
A ONG, no entanto, passou a alegar que os animais seriam vítimas de maus-tratos, o que é negado pelo pesquisador, e a exigir que a universidade não apenas proibisse o uso de suas dependências para os procedimentos em questão, como também se abstivesse de realizar quaisquer outras pesquisas com animais.
Na véspera da data de início dos procedimentos, a UEPG divulgou uma nota afirmando que o uso de suas dependências para a pesquisa em questão seria um “boato” e que a instituição havia sido procurada para a locação de um laboratório, mas “tão logo tomou ciência das intenções do estudo, cancelou imediatamente todas as tratativas”.
No entanto, a universidade tinha ciência das pesquisas ao menos desde 2016, quando a Comissão de Ética no Uso de Animais da universidade (CEUA-UEPG) emitiu uma carta de autorização para a realização das pesquisas com os cães. Em setembro de 2021, o setor emitiu nova carta reforçando a permissão ao experimento, o que invalida a tese de que a instituição desconhecia o projeto. Havia, inclusive, professores e colaboradores da universidade envolvidos na pesquisa.
“Tenho pacientes ostomizados que me acompanham desde 2007 esperando por esse dispositivo. Mas prevaleceu o grito ao argumento, e num pensamento anticiência a atual direção da UEPG resolveu cancelar a realização da pesquisa. Foi uma sequência de erros de julgamento que está prejudicando os ostomizados não só do Brasil, mas de todo o mundo”, disse o pesquisador à Gazeta do Povo.
A reportagem entrou em contato com a UEPG pedindo posicionamento sobre o caso. Não houve retorno até o fechamento desta reportagem.
Já a ONG, na data em que a pesquisa foi cancelada, divulgou nota condenando o uso de animais em todas as formas de pesquisas científicas. “Questionamos como a UEPG está formando futuros profissionais ao compactuar que vidas sensíveis são apenas produtos a serem manipulados e descartados. Lutamos e continuaremos lutando pelo respeito a todos os animais não humanos”, diz a nota.
Teste com animais não só é permitido, como exigido para o registro de medicamentos, vacinas e dispositivos médicos
Para que medicamentos, vacinas ou dispositivos médicos, como é o caso do esfíncter artificial, sejam aprovados no Brasil, a legislação exige que o produto passe pelos testes pré-clínicos, nos quais frequentemente é indispensável o uso de animais. Um dos objetivos dessa etapa de testes é justamente avaliar aspectos relacionados à segurança para, em seguida, evoluir para os ensaios clínicos, realizados em seres humanos.
A Resolução 466, da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) – órgão do Conselho Nacional de Saúde (CNS) que tem como principal atribuição o exame dos aspectos éticos das pesquisas que envolvem seres humanos –, determina que pesquisas que usem metodologias experimentais na área biomédica envolvendo seres humanos deverão, entre outras medidas, “estar fundamentadas na experimentação prévia, realizada em laboratórios, utilizando-se animais ou outros modelos experimentais e comprovação científica”.
Para assegurar que a todos os animais utilizados em atividades de ensino ou pesquisa científica seja garantido tratamento digno, humanitário e ético foi instituído, em 2008, o Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea), que está vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia. No início de maio, o órgão emitiu uma Resolução Normativa específica para orientar a experimentação científica com uso de cães e gatos.
Já a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), para proceder com o registro de um dispositivo médico, exige que o produto tenha sido previamente testado em animais, como menciona a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 548 no Anexo 2, item 9.
Na mesma lei que instituiu o Concea, foram criadas também as Comissões de Ética no Uso de Animais (CEUAs). Nas universidades, esses órgãos devem contar com médicos veterinários, biólogos, docentes, pesquisadores e no mínimo um representante de sociedades protetoras de animais. Foi justamente esse órgão da UEPG que emitiu duas autorizações, em 2016 e 2021, para a pesquisa do esfíncter artificial com o uso dos cães. A escolha por cães se deu porque são mamíferos que, assim como o ser humano, tem a capacidade de controlar a defecação, com o cólon exercendo a função de reservatório das fezes.
“Para dispositivos médicos, medicamentos ou vacinas, por exemplo, os estudos em animais, chamados pré-clínicos, são obrigatórios tanto no Brasil como na maior parte do mundo. Isso passou a ocorrer depois da segunda grande guerra, quando os Nazistas usavam seres humanos em pesquisas de forma criminosa”, explica José Roberto Leite, doutor em Ciências Biológicas, professor da Universidade de Brasília (UnB) e consultor cientifico da People&Science.
O professor afirma que cada vez mais pesquisadores têm recorrido a abordagens alternativas sem o uso de animais, como métodos in vitro, uso de tecidos humanos provenientes de autópsias e modelos matemáticos e computacionais. Entretanto, há casos em que os testes em animais são indispensáveis.
“A legislação brasileira que aborda o uso de animais em pesquisa estabelece que os pesquisadores e as instituições devem adotar medidas para promover o bem-estar dos animais utilizados, garantindo condições adequadas de alojamento, alimentação, higiene e cuidados veterinários”, ressalta.
Pesquisa parada e ostomizados à espera
Com o fechamento de portas da UEPG e o consequente estacionamento da pesquisa, agora Josuê Bruginski aguarda que outra instituição acolha o projeto e permita que os testes sejam realizados. Enquanto isso, pessoas ostomizadas aguardam uma saída para amenizar os desafios de viver ininterruptamente com uma bolsa de ostomia.
Para Katia de Oliveira, presidente da Associação Paranaense dos Ostomizados (APO), que relatou o caso à Gazeta do Povo, a ação dos ativistas desrespeita em primeiro lugar pacientes que há anos aguardam uma tecnologia que permita que ostomizados não precisem mais fazer o uso contínuo das bolsas coletoras, responsáveis por uma série de problemas derivados do contato excessivo com a pele.
“Eu tenho dois cães em casa, que dormem dentro do meu quarto e transitam dentro da minha casa como parte da minha família. Nos preocupamos muito com cães de rua e inclusive ajudamos financeiramente uma dessas instituições. Mas, nesse caso, estão dando mais atenção aos animais do que às pessoas”, declara Katia.
“Quando aparece uma solução que pode ajudar a trazer qualidade de vida para os ostomizados, eles vetarem isso pensando nos animais, que estavam sendo bem cuidados e iriam para adoção após o procedimento, chega a ser grotesco”, desabafa.
Estacionado no Brasil, projeto é finalista de duas premiações internacionais
O primeiro protótipo do esfíncter artificial foi criado na década de 1990 durante o doutorado de Bruginski na Unicamp, o que lhe rendeu o XIV Prêmio Jovem Cientista, concedido anualmente pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Em 2007, uma versão aprimorada desse protótipo foi o único finalista estrangeiro do prêmio da francesa Fundação Altran. Sete anos mais tarde, o projeto recebeu R$1,2 milhão em recursos públicos da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) para ser viabilizado.
Atualmente o protótipo é um dos 60 finalistas do Prêmio Euro Inovação na Saúde, iniciativa da Eurofarma que reconhece grandes inovações dentro da área da saúde e conta com participantes de 17 países. “O produto é realmente inovador. Vários países do mundo estão tentando achar uma solução para isso. Seria um produto brasileiro, de alta tecnologia, para o mundo, mas esbarrou no imediatismo de resposta diante de uma falsa denúncia de maus-tratos”, diz Bruginski.
“Agora buscamos uma porta aberta, uma instituição que defenda o pensamento científico. É uma tristeza, porque as universidades deveriam ser uma fortaleza de defesa e de formação do diálogo, do pensamento científico. Mas infelizmente não foi o que aconteceu”, lamenta o pesquisador.