A etimologia da palavra cultura nos explica que a origem latina do termo significa, em linhas gerais, aquilo que se quer cultivar. Ao transpor o significado restrito – tal como centenas de estudiosos se propõem a fazer há décadas – podemos entender a expressão como algo imprescindível para a sobrevivência de um povo, o que, na tradução de Edival Alves, de 57 anos, é o mesmo que “uma coisa que ajuda a contar a história de toda a nossa vida”.
Alves não é pesquisador, nem acadêmico. Ele trabalha como pescador em Guaratuba, no Litoral do Paraná, mas sabe muito bem da importância de manter viva a memória e o costume de uma comunidade. Exatamente por isso, teme pelo futuro de uma das tradições mais antigas do povo caiçara do estado. Junto com os companheiros Elói da Silva, 68 anos; Jorge Freitas, de 64, e Antonio Silva, de 77, ele forma o grupo dos últimos quatro foliões do Divino Espírito Santo da cidade – que vive um sobressalto pela possibilidade de que a tradição formosa e centenária se acabe num piscar de olhos.
“É uma coisa que deixa a gente muito angustiada”, descreve a agente cultural Rocio Bevervanso, uma das entusiastas da prática na cidade. “As pessoas antigas, que participavam, foram morrendo e é difícil encontrar quem queira continuar. Por isso, o que nós temos aqui hoje são peças raras”.
Os foliões da festa do Divino Espírito Santo são o chamariz de uma das comemorações mais difundidas do catolicismo popular. Muito antes de o clima alvoroçar na cidade, eles saem em cortejo para pedir donativos e convidar a população para prestigiar os festejos. Em Paranaguá, a peregrinação – que abrange principalmente as residências do interior – começam cerca de dois meses antes da festa.
Em suas peregrinações, os foliões percorrem casa por casa, onde entoam cantos que invocam santos da cristandade. Vez ou outra, ganham refeições fartas e uma cama para repousar.
“É bonito, mas não é uma coisa fácil”, relata Jorge Freitas, que há 17 anos é um dos foliões de Guaratuba. Ele reclama que, além da falta de interesse dos mais novos para dar continuidade à tradição, muitas famílias também não recebem mais os “enviados da festa”. “É um sufoco pra gente, que já é mais velho, caminhar esse tanto, e fica mais pesado quando vemos que até entrar nas casas tá ficando mais difícil. Já pensei em largar”, desabafa.
Há quase cinco décadas como folião em Guaratuba, Elói Silva arrisca simplificar o que lhe proporciona a participação na festa do Divino: “alegria”, diz, cabisbaixo e com uma voz abafada na timidez que some tão logo chega em uma nova casa para oficializar o convite cristão. Com o pequeno tambor nas mãos, os olhos semicerrados, parece esquecer dos quilômetros que ainda precisa caminhar e do quanto precisa lutar para que a história de muitas gerações não se torne apenas uma boa lembrança.
Escola à vista
As “peças raras” de Guaratuba já representam apenas uma fatia do grupo de peregrinação no município, uma vez que, tradicionalmente, os cortejos são feitos por oito pessoas. A comunidade relata que a última vez que os foliões saíram em quadro completo foi em 2009. Desde lá, foram poucos os que quiseram se unir a eles.
Um deles foi o pescador Antonio Silva, de 77 anos. Para não deixar os “precursores” da festa ainda mais desfalcados, ele decidiu cumprir o percurso junto. Caso contrário, seriam apenas três foliões nas ruas.
“Eu entendo que não tem ninguém e não me importei em vir esse ano. Meus irmãos já estiveram aqui também e, se der, no próximo ano vou continuar”, disse.
O padre da comunidade, Roque Sutil Gabriel, queixa-se da situação, mas acredita que ainda há tempo de revertê-la. Por isso, ele diz que até o fim do ano a igreja pretende abrir uma “escola de foliões” para tentar atrair os jovens.
“Os foliões são o cerne da festa. Sem eles, até o público pode cair”, analisa. “Por isso, o que a igreja decidiu foi criar essa escola, lutar pela cultura do Litoral. É uma esperança”.