Dentre muitas outras, duas importantes lacunas existiam no Brasil em casos nos quais mulheres se apresentavam em uma unidade do SUS solicitando o procedimento de aborto após alegarem terem sido vítimas de estupro. A primeira delas é que a falta de notificação às autoridades policiais, contrária ao previsto na normativa vigente, deixava impune o suposto estuprador. E, por outro lado, mulheres que simplesmente queriam interromper sua gravidez, sem de fato terem sido violentadas, poderiam se aproveitar da mera autodeclaração, sem necessidade de provas, para serem submetidas ao procedimento de aborto.
Essas brechas foram sanadas com a publicação da Portaria 2.282 de 2020. Entre outros itens, o documento estabelece que profissionais de saúde, ao acolherem vítima de estupro, notifiquem às autoridades policiais. Além disso, a norma traz outras modificações em benefício da mulher, como a compulsoriedade de orientação sobre os riscos do aborto e a possibilidade de ultrassonografia.
À Gazeta do Povo, Raphael Câmara, secretário de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde e doutor em Ginecologia pela Unifesp, explica que a atualização ocorre por provocação da própria Defensoria Pública da União (DPU), a qual, por meio do defensor Danilo de Almeida, lotado em Brasília, solicitou que o governo adequasse o documento à lei vigente. A pasta garante que a mudança não foi uma resposta ao recente caso de estupro e aborto envolvendo uma garota de 10 anos.
Na prática, a atualização gera benefício para as próprias vítimas, já que crimes de estupro antes acabavam acobertados pela morte da criança e pela ausência de comunicação à autoridade policial. Agora, os casos serão devidamente investigados e os autores dos crimes podem ser punidos.
A alteração também movimentou grupos de todos os lados. A comunidade pró-vida, embora tenha apoiado a mudança, afirmou ter sido incompleta. Na oposição, grupos manifestaram repúdio ao novo documento e saíram em defesa do dito "aborto legal".
O artigo 128 do Código Penal é claro, embora grupos se utilizem da normativa para tentar defender o conceito de "aborto legal" e afirmam ser este um direito previsto em lei. Pelo dispositivo, a prática não se torna "legal", mas apenas é despenalizada nos casos de risco de vida da mãe e quando a gravidez é resultado de estupro. Por decisão do Supremo Tribunal Federal, a interrupção voluntária da gravidez também não é penalizada em situações em que o feto é anencéfalo. Há movimentos pró-vida que pedem o cumprimento estrito da lei, ou seja, como o aborto é crime, embora não penalizado nesses casos, ele não deveria ser realizado pelo SUS.
"O processo está tramitando há muito tempo. Fazer uma portaria não é uma brincadeira de um dia, uma semana. Há todo um trâmite, um processo que é necessário fazer e, na verdade, não passou de uma coincidência [a atualização da portaria dias depois do ocorrido no Recife]", afirma Câmara.
"E também está relacionada ao Agosto Lilás, mês de combate à violência sexual. Foi uma coincidência, e coincidências acontecem. Não podemos deixar de atualizar a lei por conta de um caso isolado. Outras mulheres podem ser estupradas, e vamos deixar de atualizar a lei para não parecer que é uma resposta? O poder público não pode agir dessa forma", salienta o secretário.
Câmara também lembra que o foro adequado para discutir o tema de forma mais profunda é o Parlamento. "Nossa portaria está estritamente dentro da lei. Não podemos avançar qualquer vírgula a mais", argumenta.
"Não posso proibir o aborto, nem exigir que a mulher faça o boletim de ocorrência, não posso fazer nada além do que a lei prevê. Se fizéssemos isso, não apenas a portaria seria ilegal, como o médico que a obrigasse a isso estaria cometendo crime de constrangimento. Não podemos expor os médicos a isso", explica.
Na última sexta-feira (28), no âmbito do do Plano de Apoio à Gestação e Puerpério Saudáveis, o Ministério da Saúde liberou R$ 260 milhões para estados e municípios ampliarem o atendimento a gestantes durante a pandemia da Covid-19.
Confira a entrevista com Raphael Câmara sobre a nova portaria:
A publicação da portaria movimentou duas frentes: o movimento pró-vida que, em linhas gerais, viu o documento com bons olhos e, por outro lado, grupos que se manifestaram totalmente contra a nova normativa. Parlamentares também já se movimentaram com o intuito de sustar os efeitos do documento. Como o senhor tem visto a repercussão?
Raphael Câmara: Já esperávamos a ampla repercussão. Por um lado, há o pessoal que defende o aborto, e muitos estão promovendo fake news a respeito da portaria, e, de outro, as pessoas conservadoras, em geral eleitores do presidente [Jair Bolsonaro], estão achando excelente. A cobertura da mídia, de forma geral, tem sido muito enviesada, pois não apresenta pontos contraditórios a quem defende o aborto e, quando o faz, convida pessoas que apresentam argumentos religiosos, mas nenhum médico, sendo que pesquisas mostram que a maioria dos médicos ginecologistas é contra a descriminalização do aborto.
A atualização da portaria foi algo completamente técnico, sem nenhum teor moral. Estamos apenas seguindo a lei. Ouvi muitas pessoas falando tanto em lei e, quando atualizamos a portaria conforme a lei vigente, fomos criticados. Isso revela uma total hipocrisia.
A antiga portaria, de 2005, estava em desconformidade com a própria lei vigente. O Ministério da Saúde já havia sido provocado pela Defensoria Pública da União (DPU) para atualizar o documento. Em sua opinião, por que isso ocorreu apenas agora?
Embora muitas pessoas tenham afirmado que a atualização da portaria foi uma iniciativa que surgiu da "nossa cabeça", ela ocorreu principalmente pela provocação da DPU. Nós tomamos ciência da ilegalidade e solicitamos a atualização.
O novo documento foi elaborado com a assistência do corpo jurídico do Ministério da Saúde. Não é brincadeira e nem bagunça. Nem passa por uma ou duas pessoas antes de ser publicado. Ele é avaliado por vários profissionais. Eu, particularmente, já estou ciente da necessidade de atualização há muito tempo, com a mudança da lei. O ministério também estava ciente da necessidade.
O pedido da DPU não é de agora. Sendo assim, o que o senhor diria a quem afirma que a portaria é uma resposta ao caso da garota de 10 anos que foi estuprada por anos e, após engravidar, abortou um bebê de cinco meses?
Não é isso, de forma alguma. O processo está tramitando há muito tempo, e fazer uma portaria não é uma brincadeira de um dia ou uma semana. Na verdade, não passou de uma coincidência. E também está relacionada ao Agosto Lilás, mês de combate à violência sexual. Foi uma coincidência, e coincidências acontecem. Não podemos deixar de atualizar a lei por conta de um caso isolado. Outras mulheres podem ser estupradas, e vamos deixar de atualizar a lei para não parecer que é uma resposta? O poder público não pode agir dessa forma.
O cerco ao autor do crime, além de estar agora alinhado à lei vigente, é um benefício para a própria vítima de estupro. Certo?
Com certeza esse é o ponto mais relevante da portaria. Antes, essa questão era condicionada à vontade da vítima. Pela lei, desde 2018, não é mais. Qualquer pessoa que fique ciente de um ato de estupro tem a obrigação de denunciá-lo, ou seja, não há mais discricionariedade. Nesse aspecto, a portaria de 2005 estava desatualizada, e podemos até dizer que ela era ilegal.
O que fizemos foi também dar segurança jurídica aos médicos, para eles se adequarem à lei atual do país. Não tínhamos a opção de não fazê-lo. Não posso ficar ciente de uma portaria ilegal e simplesmente não fazer nada.
Alguns movimentos, sobretudo pró-vida, consideraram as mudanças na portaria como insuficientes, já que a prática do aborto - mesmo em casos de estupro - permanece prevista como crime pelo artigo 128 do Código Penal, embora seja despenalizada ou tolerada. Dessa forma, haveria a necessidade de total revogação da antiga portaria. Como o senhor responde a isso?
Acho que esses pedidos são legítimos e, inclusive, eu concordo com vários deles, embora não com todos. Contudo, o foro adequado para isso é o Parlamento. A portaria do Ministério da Saúde está estritamente dentro da lei. Não poderíamos avançar uma vírgula a mais.
Ora, para mudar a lei, é preciso pressionar deputados, senadores. Não posso proibir o aborto, nem exigir que a mulher faça o boletim de ocorrência. Não posso fazer nada além do que a lei prevê. Se fizéssemos isso, não apenas a portaria seria ilegal, como o médico que a obrigasse a isso estaria cometendo crime de constrangimento. E nós também não podemos expor os médicos dessa forma. Algumas das críticas não são apenas ilegais, como contraproducentes.
Quais são as dificuldades técnicas para cumprir o que estabelece a portaria ao determinar como obrigatória a preservação de possíveis evidências materiais do crime, tais como fragmentos de embrião ou feto?
Não há dificuldade. Inclusive, no caso de garota [que fez o aborto] em Pernambuco já foi detectado que o DNA do estuprador é o mesmo do bebê. Sou um médico legista e sei que isso é comum. Não estamos falando em guardar o bebê. Pelo contrário, significa coletar fragmento do embrião e manter em geladeira ad eternum para, caso haja suspeito, utilizá-lo para confrontar o DNA do feto com o do suposto estuprador. Qual a dificuldade disso?
Quem trabalha em centros de aborto dito legal precisa entender, inclusive, que há ônus e bônus. Há muitas obrigações legais em relação a isso. Faz parte do processo, não podemos deixar de guardar a prova. Por exemplo, se eu faço uma cirurgia, abro barriga da pessoa e encontro um projétil, eu tenho a obrigação legal de enviar aquilo à delegacia. Não cabe a mim decidir, é o que tenho de fazer.
Sobre a possibilidade de realização de ultrassonografia, não é uma obrigação, correto, secretário?
Está claro no texto da portaria que é apenas uma sugestão, se a gestante quiser. Se não optar por isso, ela não precisa ver absolutamente nada. Em geral, só se considera um desfecho legal quando se mata o bebê. Estamos apenas dando uma chance para, se a mulher quiser, ver o bebê.
E se ela quiser desistir? Parece que é ruim ela querer desistir de abortar, e isso me deixa muito assustado. Primeiro, não se trata de nenhuma tortura - afinal, eu nunca vi uma tortura ser opcional. A decisão é dela. Ninguém vai obrigá-la a nada. Está muito claro no texto da portaria que isso é opcional.
O novo documento deixa de fora um dispositivo do Termo de Consentimento da antiga portaria, que deveria ser assinado pela vítima, e prevê: "estou informada da possibilidade de manter a gestação até o seu término, sendo-me garantido os cuidados de pré-natal e parto, apropriados para a situação; e das alternativas após o nascimento, que incluem a escolha de permanecer com a criança e inseri-la na família, ou de proceder com os mecanismos legais de doação". Por que isso ocorreu, secretário?
A questão da adoção não está na alçada do Ministério da Saúde.
Diferentemente das normativas anteriores, o Ministério da Saúde também estabeleceu que a gestante seja informada a respeito dos desconfortos e riscos possíveis à saúde com a realização do aborto...
Quando se faz qualquer procedimento de saúde, os profissionais são obrigados a falar dos riscos de forma detalhada e, inclusive, sobre a possibilidade de morte do paciente, se for o caso. A antiga portaria, contudo, era completamente omissa em relação a isso. É uma obrigação do médico e ele não pode ser negligente no dever de informar. Não consigo compreender porque as pessoas estão batendo nisso. O termo de consentimento é feito justamente para falar dos riscos do procedimento.
Além disso, não tiramos isso da nossa cabeça. O documento deixa claro a fonte: o NHS (National Health Service) britânico, espécie de SUS da Inglaterra. O país libera o aborto e seu sistema gratuito de saúde está entre os maiores do mundo. Em geral, até então, não se falava sobre os riscos, as pessoas eram proibidas. E se quisessem falar, eram taxadas como fanáticas. No Ministério da Saúde não há nenhum fanático. Há muitos especialistas.
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