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Imigração

Um ano de viagem do Vêneto até a Colônia Santa Felicidade

Casa da família Boscardin, construída em 1891, era conhecida como a Casa dos Gerânios | Acervo Casa da Memória/ Fundação Cultural de Curitiba
Casa da família Boscardin, construída em 1891, era conhecida como a Casa dos Gerânios (Foto: Acervo Casa da Memória/ Fundação Cultural de Curitiba)
Carroças eram usadas para transportar a produção aos mercados no centro de Curitiba |

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Carroças eram usadas para transportar a produção aos mercados no centro de Curitiba

Maria de Lourdes, Bepe, Divanette e Dorival: o tempo de colônia ainda vive na memória dos mais velhos |

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Maria de Lourdes, Bepe, Divanette e Dorival: o tempo de colônia ainda vive na memória dos mais velhos

Quando 900 italianos embarcaram em um navio a vapor rumo ao Paraná em novembro de 1877, a saga dos imigrantes mal havia começado. Pouco depois de sair do porto de Gênova pararam em Marselha, na França, onde tiveram de ficar em quarentena esperando que alguns passageiros se recuperassem de um surto de angina.

Para piorar, descobriram que o navio seria trocado por outro movido a vela. "Mamma Mia, Dio Santo" teriam exclamado os bons italianos, antes de desistiram da aventura – que, certamente, estaria fadada ao fracasso.

Sem sucesso, tentaram reaver o dinheiro da passagem e tiveram de se contentar em retornar a Gênova. Na época, a Itália estava tomada pela fome e pela pobreza, fruto das guerras de unificação do território. Para não continuar vivendo na miséria, o grupo retomou a viagem no dia 11 de dezembro de 1877, agora sim, no navio a vapor "Sulis".

Sem grandes problemas, o grupo chegou ao Rio de Janeiro no dia 2 de janeiro de 1878 e três dias depois já estava no Porto de Paranaguá. O governo imperial da época havia determinado que os imigrantes recém-chegados fossem alojados nas comunidades de Porto de Cima e São João da Graciosa, em Morretes, no Litoral paranaense.

Mas os italianos não se adaptavam ao clima, tão diferente dos ares europeus. O calor era insuportável e o solo pouco feito ao plantio. Até que uma manada de bois mudou a vida de parte dos italianos, que tinham sua origem na região do Vêneto, no norte da Itália.

Ao avistarem tropas conduzindo gado indagaram de onde eles vinham. A resposta foi: Curitiba. "Ora, se lá havia bois haveria também boas terras", pensaram. Em novembro de 1878 – há 135 anos –, 15 famílias adquiriram lotes na região do Butiatuvinha, que deu origem à Colônia Santa Felicidade. O nome homenageia Felicidade Borges, uma das proprietárias do terreno. A escolha do "Santa" deve-se à tradição católica dos italianos.

Pedacinho da Itália

Cinco anos após a chegada dos pioneiros, a colônia já contava com 70 famílias. À medida que novos imigrantes chegavam, eles compravam terras nas proximidades e construíam estradas. Na colônia, se dedicaram aos vinhedos, à criação de gado, à horticultura e aos queijos, e à produção e venda de móveis e objetos de vime.

Sob o lema "trabalhar, comer bem e rezar", Santa Felicidade foi se consolidando como um dos pontos mais importantes da capital paranaense. Em 1891, atendendo à religiosidade dos italianos, foi construída a Igreja São José. Em 1899, construiu-se a primeira escola. Na virada do século 19 para o 20, a região já era habitada por cerca de 200 famílias. Hoje, graças aos aventureiros que atravessaram o Oceano Atlântico, a tradição da polenta e do vinho está arraigada em Santa Felicidade. Os nonos agradecem.

Os "nonos" que viram o bairro se integrar à cidade

Estradas de chão, carroças, parreirais, incontáveis hortas e poucas casas pelas redondezas. Esse era o cenário de Santa Felicidade quando Bepe Escorsim nasceu, há 69 anos. "Até meados da década de 60 praticamente não tinha asfalto por aqui", recorda. Os primeiros paralelepípedos atraíram tanto a curiosidade dos moradores que Divanette Ercole Slompo foi com o namorado conhecer as primeiras ruas pavimentadas. "Lembro que minha mãe saía com a carroça de uma amiga em direção ao centro para vender frutas e verduras", afirma.

Mas, como as carroças se locomoviam em filas, a esposa de Bepe, Maria de Lourdes Culpi Escorsim, conta que as mercadorias tinham de ser cobertas por panos. "Caso contrário os cavalos que vinham atrás comiam todas as frutas." Nessa época, em que as uvas ainda eram pisadas para virar vinho, a cultura do artesanato de vime estava no auge. "Fabricavam cestas e até móveis de vime. Hoje, essa tradição diminuiu", diz Divanette.

Mas a gastronomia talvez seja o principal traço cultural que permaneceu entre os moradores. Macarrão, nhoque, polenta, cuques, cuecas viradas, risoto... "É tanta comida boa, mas parte dos mais novos prefere comer nesses fast foods", lamenta Bepe. Sinal de que a tradição italiana, apesar dos esforços dos mais velhos, corre riscos no futuro. "As tradições culturais diminuíram. Há pouco plantio de uvas e muitos não gostam de cozinhar os alimentos típicos", completa.

Idioma

Outro sinal de que as tradições mudaram é o baixo número de pessoas que falam italiano ou o dialeto de Vêneto, região de onde a maioria dos imigrantes veio. Bepe, por exemplo, demorou a falar o português. Começou a ter coragem de pronunciar as primeiras palavras do novo idioma por volta dos 20 anos. "Antes a gente só falava italiano em casa e não dominava muito bem o português", lembra.

Mas, pela falta de pessoas que sabem a língua-mãe, acabou se esquecendo das palavras italianas. "Eu entendo o que as pessoas dizem, mas não consigo falar." Na contramão desse fenômeno, Divanette tenta ensinar algumas palavras italianas aos netos. "Alguma coisa eles já conseguem entender".

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