Nos seus tempos de guri, Galdino Gonçalves não subia em árvores para brincar, mas para dormir. Não tinha uma casa não tinha nada. É desse episódio que parte para contar sua trajetória de menino órfão, pobre e negro que aos 14 anos, depois de viver uma infância sem abrigo e sem sorte, tomou seu rumo e zanzou de Montenegro, no interior do Rio Grande do Sul, até Rebouças, no Sudeste paranaense. Gostou do vento, colecionou apelidos (Nego Macumba, Camarão, São Camilo, Capitão Galdino...) e passagens dignas de cordel. Como diria o cantador, virou bacharel em "estradas da vida". Levou meio século para sossegar. Trabalhou como caminhoneiro, motorista de ônibus, taxista, garimpeiro e, quando devia estar com chinelos de flanela, catador de latinhas.
Aos 78 anos, Galdino vive hoje numa casinha de fundos no Capão Raso, ao lado de Ruth Rodrigues, 65 anos, sua companheira há 15. Conheceram-se perto do Mercado Municipal. Vivem com R$ 900 mensais. A boléia é agora apenas matéria de memória. Já o motivo que o levou a cruzar o país, não. A equação é simples. O garoto que não tinha família queria ter amigos e os procurou por tudo que é canto e tudo que é jeito. Achou. Alguns viraram irmãos a exemplo de José e Chico Tigüera, de Açaí, no Norte Pioneiro. Outros, uma vaga lembrança. Para Jorge Lima manda um abraço apertado. "Eu gosto de gente", repete. A frase bem poderia figurar no pára-choque de um caminhão.
O Galdino do Capão Raso sem carreta e sem pedágio ainda viaja. Dia desses, num percurso de miseráveis cinco quadras, "estacionou" na frente de Vilma Dionísio de Souza, voluntária na Unidade de Saúde Vila Clarice. "Causo" vai, "causo" vem, a nova amiga descobriu que o Galdino estradeiro e bom de prosa tinha poucas letras. Chamou-o para um programa de alfabetização. "Disse para ela que era tarde. Mas nunca é. Concordei. Eu não sabia se o a tinha perninha", lembra.
Em troca do bê-á-bá, deixa seu livro aberto e a pestana dos ouvintes levantadas. "Córdoba, na Argentina? Conheço..." E senta que lá vem a história. "Só tive Deus nesse mundo. Vi coisa triste. Trabalhei bastante. Subi estrada com café, desci com cerveja. Deixei muito patrão rico. Esqueci todo mal que me fizeram", finaliza Galdino, narrador e herói anônimo que distribui passagens gratuitas para a imaginação alheia. Pode-se embarcar com ele para Recife, Fortaleza, Cuiabá... Ou ganhar passagem gratuita para assuntos do coração. Um dos melhores capítulos é o de seu amor de mocidade pela londrinense Maria Norma dos tempos em que, se fosse preciso, os mocinhos roubavam suas amadas. Capitão não deixou por menos.
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