Paranaguá tem um lugar muito bonito, mas ali turista não entra. O Lago Azul, um recanto recoberto de verde e água mansa, dá calafrios nos mendigos só de ouvir falar. É para lá que eles são levados para um corretivo. Foi assim com quatro moradores de rua da cidade ouvidos pela reportagem. Entre eles Clodoaldo e o amigo Miguel. O primeiro sobreviveu à tortura no pau-de-arara, mas o amigo não teria escapado com vida. Isso aconteceu num dia de 2004 já perdido na memória de Clodoaldo. Com as seqüelas ainda na mente e três fios de costela a menos, na quinta-feira ele voltou ao lugar com a reportagem da Gazeta do Povo.
Às margens do Lago Azul, Clodoaldo contou sua história. Era noite quanto ele e Miguel foram pegos por quatro homens numa rua onde cuidavam de carros perto do Mercado do Peixe e levados para aquele lugar. Ainda na beira da estrada de terra tiveram as roupas arrancadas e, pelados, deram uns 240 passos até chegar a uma plataforma natural de areia às margens do lago. Ali, braços e pernas foram flexionados depois de revestidos com câmaras de pneu, uma forma de evitar hematomas. Uma barra de ferro serviu de suporte para suspendê-los. "Depois de bater muito, de chutar, eles afundaram a gente na água", relata. O companheiro dele estava morto ao ser retirado do lago.
Sobrevivente
Clodoaldo diz que ainda apanhou muito de cacetete na sola dos pés e nas pernas antes de ser largado no areal às margens do lago, a dez quilômetros do centro da cidade. Foram horas se arrastando em busca de ajuda até ser atendido na Santa Casa. Coagido e receoso de represália, mentiu que sofrera um acidente. Ninguém procurou saber a verdade, talvez por se tratar de um mendigo. Mas esta não é a única história trágica de Clodoaldo. Depois do ocorrido com Miguel, ele ainda viria a saber da morte de outro colega de rua. Meses depois, mais uma vez guardas municipais percorreram as ruas de Paranaguá recolhendo indigentes. "Lotaram um microônibus".
Clodoaldo diz que ao passar na vizinha Morretes, os guardas tiraram um dos mendigos do microônibus alegando que o levariam para casa. Dias depois soube que o colega tinha sido estraçalhado num trilho de trem. Outros passageiros foram sendo largados ao longo do caminho e só Clodoaldo e sua mulher, Bianca (já morta) chegaram a Registro (SP), o destino final. De carona, retornaram até Curitiba e ali ganharam passagens do serviço de assistência social da prefeitura para voltar a Paranaguá. Esse parnanguara de 41 anos de idade voltou para as ruas, onde vive praticamente desde os 12, já órfão de pai e mãe.
"As pessoas passaram a não dar importância a essas histórias ou a considerá-las fantasiosas por se tratar de moradores de rua", reclama padre Adelir Antonio De Carli, responsável pela Pastoral Rodoviária em Paranaguá. São histórias como a de Tati, de 22 anos, levada com um grupo de amigos ao Lago Azul e forçada a correr para o matagal ouvindo tiros para o alto. Ou do deficiente físico Lucas, que em julho de 2004 foi retirado das imediações do mercado municipal e deixado junto com mais quatro em Alexandra, a cerca de 20 quilômetros de Paranaguá. Voltaram a pé, Lucas de muleta.
Também são histórias como a de João, de 60 anos, já retirado por cinco vezes das ruas da cidade. Na primeira vez foi levado para Registro, de onde voltou a pé junto com mais quatro colegas de rua. Na segunda vez foi largado num matagal de Morretes; na terceira, num areal perto do lixão de Paranaguá (região próxima do Lago Azul); na quarta, em outro matagal da cidade; e na quinta vez tentaram levá-lo para Curitiba, mas eles diz que não foi porque está doente (tem reumatismo crônico).