A Rua Zamenhof, no Alto da Glória, está em vias de perder seu endereço mais célebre a Casa da Estrela, número 56. A residência toda em madeira, construída com cinco pontas e de uma engenhosidade que deixa boquiabertos arquitetos dos quatro costados, foi doada à Pontifícia Universidade Católica do Paraná, no último dia 5, pelos três herdeiros de seu construtor, o perito contador Augusto Gonçalves de Castro, morto na década de 70. A partir do mês que vem, a casa será desmanchada, mapeada, catalogada e transferida para o Câmpus Prado Velho, onde vai funcionar como extensão do Ateliê de Restauro, espaço cultural e, fatalmente, uma curiosidade para parte das 30 mil pessoas que circulam por ali diariamente. A estimativa é de que o processo todo demore um ano e meio.
A casa feita em período incerto dos anos 30 tem arquitetura inspirada na estrela de cinco pontas, símbolo do esperanto, língua criada no fim do século 19 pelo médico polonês Ludovico Zamenhof a partir de elementos comuns a diversos idiomas. Zamenhof batiza a rua da Casa da Estrela desde 1952, quando um congresso de esperantistas em Curitiba resultou na aposentadoria da placa em que estava escrito "Manoel Félix". A retirada do Alto da Glória corresponde a desmanchar um campo de futebol na Rua Charles Miller. Mas ainda é lucro.
A doação da Casa da Estrela encerra uma novela que se arrasta por quase seis anos, tempo em que os filhos de Augusto Gonçalves de Castro Moysés, Idalina e Carlos Augusto fizeram das tripas coração para vender o terreno sem comprometer a integridade da obra, uma promessa feita ao pai no leito de morte. Os esforços pareciam em vão. A área de 700 metros quadrados, bem localizada, causa comichão no mercado imobiliário, mas o condicionamento da venda à transferência da Estrela para um lugar em que pudesse ser preservada provocava juras de casamento nunca cumpridas. Mesmo que os custos extras com o desmanche não ultrapassem de R$ 60 mil a R$ 100 mil, quantia que caberia no bolso de quem faz investimentos no Alto da Glória. O músico erudito Moysés Azulay de Castro herdeiro que encabeça as negociações , inclusive, negou-se a falar com a imprensa até que a operação fosse finalizada, com medo de mais um alarme falso.
Moysés se tornou uma espécie de guardião oficial da residência. Abria as janelas para arejar, mantinha o jardim em ordem, além de atender às levas de estudantes de Arquitetura e de profissionais que pediam para dar uma espiada na Estrela comumente esticando a visita, embalados pelas histórias do anfitrião. Nessas ocasiões, lembrava a saga de seu pai, um visionário que fez a casa em quatro anos, trabalhando depois do expediente, e que precisou vender um Ford para comprar lotes de pinheiro de seis metros usados na fachada. Castro ia a campo munido de conhecimentos construtivos que pareciam não ultrapassar os de um curso por correspondência, um ajudante, um lampião de carbureto para iluminar a noite e um serrote de 20 centímetros, de fabricação própria. Nada mais. Como se dizia, "isso é incrível".
Vista da Rua Zamenhof, a Casa da Estrela mais parece um chalé de madeira antigo, com relativo destaque diante das estimadas (informalmente) 12 mil casas de madeira que sobrevivem aos cupins e à Curitiba de concreto, vidro fumê, dourado e estilo neoclássico inglês. Faz parte das 20 casas de madeira transformadas em Unidades de Interesse de Preservação (UIPs) pelo Ippuc e tem licença para translado. Tempos atrás, cogitou-se levá-la para a Vila da Madeira, no Parque do Atuba, sem avanços. Olhando de dentro, causa perplexidade instantânea saber que alguém construiu algo tão complexo com tamanha economia de recursos e em condições adversas. A obra de 178 metros quadrados, pé-direito de 2,50 metros, foi feita com encaixes artesanais e nenhum ângulo de 90 graus. Especialistas no assunto, como o arquiteto Key Imaguire Júnior, professor da UFPR, pesquisador de arquitetura de madeira e fã confesso da invenção de Castro, não acredita que haja no mundo algo igual.
Não é exagero. Além da edificação em cinco pontas que em condições normais exigiria cálculos dignos da Nasa e coragem de alpinista para sair do papel , o interior da Estrela é uma espécie de manifesto à fraternidade universal, bem a gosto da Teosofia, que, ao lado do esperanto, governava os sonhos de Castro. A crença de que todos os povos poderiam falar a mesma língua e viver em harmonia é traduzida em paredes, corredores e quartos que se cruzam por meio de janelas internas e de um mezanino circular. Ou seja, os moradores podiam se ver, falar e interagir o tempo todo, formando um laboratório doméstico de como o mundo poderia ser com a vantagem de ter aroma de café.
Preservar esse exemplar sem similares se tornou uma causa não só para os filhos e netos de Castro, mas para gente como Imaguire, cujas negociações para levar a Estrela para o Centro Politécnico da UFPR onde funcionaria como laboratório de arquitetura esbarraram na burocracia, enterrando a melhor proposta dentre as muitas feitas para salvar a casa. A entrada da PUCPR na doação compensou tantos esforços e acenou um final feliz. Agora é acompanhar passo a passo a transferência. Dentro de um ano e meio, a casa "diferente" da pequena Rua Zamenhof vai virar a estrela do Prado Velho.