Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Memória

Um lugar bem longe do paraíso

Em tese, túmulo de beleza arquitetônica ou valor histórico pode ir ao chão em Curitiba. Não há lei que os proteja. Nem norma para reforma

Aviso preso a jazigo no “Municipal”: administração faz alerta aos familiares. Muitos não responderão | Fotos: Henry Milleo/Gazeta do Povo
Aviso preso a jazigo no “Municipal”: administração faz alerta aos familiares. Muitos não responderão (Foto: Fotos: Henry Milleo/Gazeta do Povo)
Pierino Riva– Em 1925, a família Riva é assolada pela morte de seu único filho, Pierino, 21 anos. Decidem lhe erguer um monumento em tamanho natural. O pai, José, vai à Itália posar para o escultor Alberto Bazzoni. Tinham o talhe parecido |

1 de 8

Pierino Riva– Em 1925, a família Riva é assolada pela morte de seu único filho, Pierino, 21 anos. Decidem lhe erguer um monumento em tamanho natural. O pai, José, vai à Itália posar para o escultor Alberto Bazzoni. Tinham o talhe parecido

O assassinado– Suntuoso, chama atenção por trazer no epitáfio – em Carrara – um manifesto contra a violência que vitimou José Ernesto de Moura Brito, assassinado em 15 de março de 1896,

2 de 8

O assassinado– Suntuoso, chama atenção por trazer no epitáfio – em Carrara – um manifesto contra a violência que vitimou José Ernesto de Moura Brito, assassinado em 15 de março de 1896,

Santa Cecília– Se atento, o visitante do Municipal encontra recados da fé deixados pelos que já se foram. E informes sobre o tamanho das contas bancárias. Há túmulos buscados em Portugal. Pedras caras, como o liós. Afrescos nos interiores. E enigmas, como a reprodução do martírio da Santa Cecília, no túmulo de Altevir Abreu |

3 de 8

Santa Cecília– Se atento, o visitante do Municipal encontra recados da fé deixados pelos que já se foram. E informes sobre o tamanho das contas bancárias. Há túmulos buscados em Portugal. Pedras caras, como o liós. Afrescos nos interiores. E enigmas, como a reprodução do martírio da Santa Cecília, no túmulo de Altevir Abreu

A menina Luci– Imagem da garotinha morta é um clássico dos cemitérios no mundo todo. Esse tipo de homenagem ganhou força à medida que as crianças mortas deixaram de ser vistas como anjinhos. Em Curitiba, ela se chama Luci, tinha 5 anos, e carrega cravos na barra da saia |

4 de 8

A menina Luci– Imagem da garotinha morta é um clássico dos cemitérios no mundo todo. Esse tipo de homenagem ganhou força à medida que as crianças mortas deixaram de ser vistas como anjinhos. Em Curitiba, ela se chama Luci, tinha 5 anos, e carrega cravos na barra da saia

Jazigo

5 de 8

Jazigo

Miró, o ervateiro– Chama atenção na área dos mausoléus, apelidada de

6 de 8

Miró, o ervateiro– Chama atenção na área dos mausoléus, apelidada de

Clarissa Grassi no

7 de 8

Clarissa Grassi no

Pirâmides e interiores no

8 de 8

Pirâmides e interiores no

"A necrópole segue o ritmo da metrópole – está cada vez mais vertical", faz trocadilho a pesquisadora de arte tumular Clarissa Grassi, ao falar dos cemitérios de Curitiba. Para reiterar que o "campo santo", nas devidas proporções, reflete o crescimento de avenidas como a Visconde de Guarapuava, ela aponta o dedo para uma grande fotografia que pregou na parede de seu apartamento, no Centro de Curitiba. Não restam dúvidas.

Clarissa Grassi prepara um "Guia de Visitação do Municipal", em parceria com o arquiteto Fábio Batista. Ela antecipa alguns destaques da pesquisa. Confira

Trata-se de uma imagem do "Municipal", como é chamado o Cemitério São Francisco de Paula, feita em 1940. Ainda se pode ver ali a capela mortuária – demolida na década de 1960. Colocada lado a lado com uma fotografia dos dias de hoje, consegue-se identificar um e outro anjo que resiste com bravura à passagem do tempo, vários deles com a asa quebrada. E os mausoléus das famílias ricas.

De resto, os túmulos ganharam mais gavetas, estão mais altos e descaracterizados, não raro por azulejos que sobraram da reforma do piso de alguma cozinha. Há casos, entre os endereços mais abonados, em que os jazigos foram brindados por portas com insufilme e alumínios, materiais muito aquém do mármore, do granito e do bronze usados nas fases áureas da arte cemiterial, entre o final do século 19 e a primeira metade do século 20.

Filas

Nos últimos anos, a situação se agravou. Dada a fila por uma vaga – no Cemitério do Água Verde, a lista chegou a ter mil candidatos –, a prefeitura passou a notificar os titulares dos túmulos abandonados: ou cuidavam ou perderiam a concessão. A última "chamada", em 2011, no Cemitério Santa Cândida foi tão bem dada que 203 lotes ganharam novos donos. A espera baixou para pouco mais de uma dezena de candidatos. "Ter um lugar para ser enterrado é um direito", lembra a diretora dos Serviços Especiais da prefeitura, Patrícia Rocha Carneiro.

Ninguém discute. O problema é que a "reforma agrária" estabelecida nos quatro cemitérios públicos da capital – São Francisco, Água Verde, Boqueirão e Santa Cândida –, na última década, pôs a leilão um patrimônio sem igual. O processo de "reversão" – expressão usada para traduzir a desapropriação de um túmulo – pode atingir uma cova modesta, mas também o lote de um nome fundamental para a história do estado ou um túmulo de grande expressão artística. Em tempo – a legislação ambiental prevê que o jazigo, já não tão perpétuo assim, seja demolido, mesmo que haja ali uma peça do escultor João Turin. Na sequência, a administração pública sugere que o terreno ganhe subdivisões, de modo a sanar a falta de espaço para sepultamentos. Eis o estrago.

Para chegar a tanto, basta que os sepultados não tenham herdeiros ou que os seus vivam em outra cidade ou país, o que não é difícil acontecer entre os donos dos 32.308 túmulos concedidos graciosamente pelo município desde 1854, ano de criação do "Municipal". Na última semana, por exemplo, 4 mil jazigos – 12% do total – ganharam um aviso plastificado, com a recomendação de que seus titulares devem procurar o setor competente.

O prazo para que os donos respondam é 90 dias. "Fazemos de tudo para que não percam. Estamos chamando para iniciar o diálogo", lembra Patrícia. No Brasil, a proteção ao patrimônio dos cemitérios é tão ou mais complicada do que a preservação de prédios antigos em geral. Há programas de preservação em Joinville e São Paulo, mas a arte cemiterial está longe do paraíso.

No limbo

Em Curitiba, única capital brasileira a não contar com uma lei de tombamento histórico e arquitetônico, os agravantes são ainda maiores. A administração pública negocia descontos no IPTU e venda de potencial construtivo com os aproximados 600 proprietários de imóveis listados como patrimônio. Mas esse sistema entrou em colapso. Os juízes não reconhecem a política municipal, baseada em decretos e têm liberado alvarás de demolição.

No caso dos cemitérios, piora. Não há descontos em impostos ou similares passíveis de serem negociados em troca de cuidados com os túmulos. O poder de barganha com as famílias é perto de zero. Raras são as taxas legais. Nada pode impedir que os donos passem ácido nas esculturas ali há um século ou que modifiquem as fachadas. Por outro lado, houvesse tombamento rígido – a exemplo do Panteão de Santa Felicidade – um lugar como o "Municipal" seria "congelado" e perderia a razão de ser.

Uma saída seria o tombamento da paisagem, medida que é mais branda, aliada à preservação de alguns jazigos notáveis. Resta saber se dará tempo. Muito já se perdeu. Um dos túmulos candidatos à reversão, por exemplo, traz um relevo do escultor Oswaldo Lopes. O mausoléu dos operários da indústria da erva-mate foi ao chão. O balanço do que foi para o limbo ainda está por ser feito. A foto que Clarissa tem na parede dá ideia do tamanho do luto.

Com os mortos

A estudiosa de arte cemiterial Clarissa Grassi prepara um "Guia de Visitação do Municipal", em parceria com o arquiteto Fábio Batista. Ela antecipa abaixo alguns destaques da pesquisa. Além de destacar o "estilo" impresso pelas famílias nos jazigos, o trabalho tem o mérito de listar os símbolos deixados nas lápides – como os sinais da maçonaria –, a variedade de materiais e destacar o legado de personalidades ali sepultadas.

Com os mortos

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.