Tombar?
Cemitérios dizem mais sobre mentalidades do que arte e arquitetura
Desde o início do ano, tramita nos bastidores do Ippuc e da Fundação Cultural de Curitiba (FCC) um projeto de lei de tombamento municipal de bens históricos. O texto passa por enxugamentos, como informa o diretor de Patrimônio da FCC, Mauro Tietz. Detalhe: não prevê proteção específica à arte tumular, "apesar da gravidade da situação", como frisa o próprio gestor.
Tietz não vê problemas na aparente abstenção da palavra "cemitério" na futura lei. "Esses locais se enquadram em logradouros públicos e monumentos. É o que basta", justifica. Além do mais, em caso de aprovação da lei pela Câmara, o restauro dos túmulos mais representativos poderia ser custeado pelo Fundo Municipal de Patrimônio, esse sim previsto nas novas diretrizes.
Tietz, ao lado da pesquisadora Clarissa Grassi, atual presidente da Associação Brasileira de Assuntos Cemiteriais, e da administradora Patrícia Carneiro, da prefeitura, formam o novo trio de defesa dos "campos santos". O posto foi ocupado em outros tempos pela pesquisadora Cassiana Lacerda autora de um longo estudo sobre o "Municipal" e pelo ex-prefeito Rafael Greca, que chegou a pedir aos deputados estaduais o tombamento compulsório do mais antigo cemitério de Curitiba, sem sucesso.
A tarefa é quase sempre inglória. A começar pela dificuldade em ditar o que deve ou não ser preservado. "Em alguns momentos, o fausto dos mausoléus são símbolos de poder", lembra Clarissa. Em outros, traduzem um modo de vida. O jazigo do simbolista Dario Vellozo, por exemplo, é um jardinzinho cercado. Parece abandonado, mas não é.
4 mil reversões é o total de notificações aos proprietários de túmulos expedidas pela prefeitura nos quatro cemitérios públicos de Curitiba. Foram desviados na lista jazigos de caráter histórico e arquitetônico notáveis. Medida, no entanto, é paliativa, pois jazigos simples também podem ser representativos da memória da cidade.
"A necrópole segue o ritmo da metrópole está cada vez mais vertical", faz trocadilho a pesquisadora de arte tumular Clarissa Grassi, ao falar dos cemitérios de Curitiba. Para reiterar que o "campo santo", nas devidas proporções, reflete o crescimento de avenidas como a Visconde de Guarapuava, ela aponta o dedo para uma grande fotografia que pregou na parede de seu apartamento, no Centro de Curitiba. Não restam dúvidas.
Trata-se de uma imagem do "Municipal", como é chamado o Cemitério São Francisco de Paula, feita em 1940. Ainda se pode ver ali a capela mortuária demolida na década de 1960. Colocada lado a lado com uma fotografia dos dias de hoje, consegue-se identificar um e outro anjo que resiste com bravura à passagem do tempo, vários deles com a asa quebrada. E os mausoléus das famílias ricas.
De resto, os túmulos ganharam mais gavetas, estão mais altos e descaracterizados, não raro por azulejos que sobraram da reforma do piso de alguma cozinha. Há casos, entre os endereços mais abonados, em que os jazigos foram brindados por portas com insufilme e alumínios, materiais muito aquém do mármore, do granito e do bronze usados nas fases áureas da arte cemiterial, entre o final do século 19 e a primeira metade do século 20.
Filas
Nos últimos anos, a situação se agravou. Dada a fila por uma vaga no Cemitério do Água Verde, a lista chegou a ter mil candidatos , a prefeitura passou a notificar os titulares dos túmulos abandonados: ou cuidavam ou perderiam a concessão. A última "chamada", em 2011, no Cemitério Santa Cândida foi tão bem dada que 203 lotes ganharam novos donos. A espera baixou para pouco mais de uma dezena de candidatos. "Ter um lugar para ser enterrado é um direito", lembra a diretora dos Serviços Especiais da prefeitura, Patrícia Rocha Carneiro.
Ninguém discute. O problema é que a "reforma agrária" estabelecida nos quatro cemitérios públicos da capital São Francisco, Água Verde, Boqueirão e Santa Cândida , na última década, pôs a leilão um patrimônio sem igual. O processo de "reversão" expressão usada para traduzir a desapropriação de um túmulo pode atingir uma cova modesta, mas também o lote de um nome fundamental para a história do estado ou um túmulo de grande expressão artística. Em tempo a legislação ambiental prevê que o jazigo, já não tão perpétuo assim, seja demolido, mesmo que haja ali uma peça do escultor João Turin. Na sequência, a administração pública sugere que o terreno ganhe subdivisões, de modo a sanar a falta de espaço para sepultamentos. Eis o estrago.
Para chegar a tanto, basta que os sepultados não tenham herdeiros ou que os seus vivam em outra cidade ou país, o que não é difícil acontecer entre os donos dos 32.308 túmulos concedidos graciosamente pelo município desde 1854, ano de criação do "Municipal". Na última semana, por exemplo, 4 mil jazigos 12% do total ganharam um aviso plastificado, com a recomendação de que seus titulares devem procurar o setor competente.
O prazo para que os donos respondam é 90 dias. "Fazemos de tudo para que não percam. Estamos chamando para iniciar o diálogo", lembra Patrícia. No Brasil, a proteção ao patrimônio dos cemitérios é tão ou mais complicada do que a preservação de prédios antigos em geral. Há programas de preservação em Joinville e São Paulo, mas a arte cemiterial está longe do paraíso.
No limbo
Em Curitiba, única capital brasileira a não contar com uma lei de tombamento histórico e arquitetônico, os agravantes são ainda maiores. A administração pública negocia descontos no IPTU e venda de potencial construtivo com os aproximados 600 proprietários de imóveis listados como patrimônio. Mas esse sistema entrou em colapso. Os juízes não reconhecem a política municipal, baseada em decretos e têm liberado alvarás de demolição.
No caso dos cemitérios, piora. Não há descontos em impostos ou similares passíveis de serem negociados em troca de cuidados com os túmulos. O poder de barganha com as famílias é perto de zero. Raras são as taxas legais. Nada pode impedir que os donos passem ácido nas esculturas ali há um século ou que modifiquem as fachadas. Por outro lado, houvesse tombamento rígido a exemplo do Panteão de Santa Felicidade um lugar como o "Municipal" seria "congelado" e perderia a razão de ser.
Uma saída seria o tombamento da paisagem, medida que é mais branda, aliada à preservação de alguns jazigos notáveis. Resta saber se dará tempo. Muito já se perdeu. Um dos túmulos candidatos à reversão, por exemplo, traz um relevo do escultor Oswaldo Lopes. O mausoléu dos operários da indústria da erva-mate foi ao chão. O balanço do que foi para o limbo ainda está por ser feito. A foto que Clarissa tem na parede dá ideia do tamanho do luto.
Com os mortos
A estudiosa de arte cemiterial Clarissa Grassi prepara um "Guia de Visitação do Municipal", em parceria com o arquiteto Fábio Batista. Ela antecipa abaixo alguns destaques da pesquisa. Além de destacar o "estilo" impresso pelas famílias nos jazigos, o trabalho tem o mérito de listar os símbolos deixados nas lápides como os sinais da maçonaria , a variedade de materiais e destacar o legado de personalidades ali sepultadas.
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