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Causo metropolitano

Um lugar chamado Tranqueira

Domingos Stocchero no local onde nasceu Tranqueira, uma invernada para animais trazidos por tropeiros | Marcelo Andrade / Gazeta do Povo
Domingos Stocchero no local onde nasceu Tranqueira, uma invernada para animais trazidos por tropeiros (Foto: Marcelo Andrade / Gazeta do Povo)
O coveiro Joel Lima e o túmulo do imigrante inglês: histórias imaginadas |

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O coveiro Joel Lima e o túmulo do imigrante inglês: histórias imaginadas

Cortado pela Rodovia dos Minérios, o pó toma conta do bairro |

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Cortado pela Rodovia dos Minérios, o pó toma conta do bairro

Há pouco mais de uma década, cansados de ouvir gracinhas na hora de preencher a ficha de crédito nas lojas da capital, os moradores de Tranqueira – antigo distrito de Almirante Tamandaré, na Região Metropolitana de Curitiba – ameaçaram um levante e decidiram fazer um plebiscito. Mudariam o nome do lugar. Capivara, Morro Azul, Água Boa, Mato Dentro ou Campo Grande. Qualquer que fosse o escolhido seria melhor do que a criançada ouvindo gozação dos piás de Areias ou de Itaperuçu, seus vizinhos.

"Mas ganhou Tranqueira por 700% dos votos", inflaciona o veterano Domingos Natal Stocchero, 85 anos, conhecido como seu Mingo, ao falar do escrutínio. Foi histórico. Na época, a eleição fez a velha-guarda sair do sossego de seus sítios e impedir o que julgavam um desaforo. Além dos Stocchero, gente dos Antoniacomi, Vanelli, Cavalli, Gabardo, Chevônica e Chimelli, entre outros, ergueu a voz em defesa do nome oficial, alegando que a mudança equivaleria a desdenhar das gloriosas origens tropeiras de Tranqueira.

Só faltou o escritor Dalton Trevisan. Tido como o maior escritor brasileiro vivo, Dalton tem suas origens em Tranqueira. Sua mãe, Catarina, era de lá e ele chegou a citar a localidade nos textos de início de carreira, hoje renegados.

Pois os veteranos não só não precisaram do Vampiro como convenceram os indecisos e mexeram com os brios da população – hoje estimada em 15 mil habitantes –, dando início à fase "eu amo Tranqueira" (leia nesta página). Por ironia, o nome que causou uma pequena batalha eleitoral é um dos últimos patrimônios da antiga colônia: sobrou quase nada do entreposto comercial e dormitório de tropeiros que vinham do Vale do Ribeira rumo a Curitiba, conduzindo rebanhos, nos idos do século 19.

Perdas

Tranqueira fica a 21 quilômetros de Curitiba e a 10 quilômetros de Almirante Tamandaré, da qual se tornou um bairro. Está em cima do Aquífero Karst. É cortada ao meio pela Rodovia dos Minérios, que lhe presenteia em tempo integral com o barulho dos caminhões e a poeira branca que sobe das carrocerias. Para os motoristas, talvez não passe de um lugarejo de beira de estrada, com algum comércio em roda e uma bela paisagem de pinheiros. Não se deve culpá-los.

A centenária igrejinha de Santo Antônio ruiu em 1994 e deu lugar a um templo como todos outros. A estação de trem "Tranqueira", a exemplo de outras da RFFSA, ficou na saudade: virou abrigo de ambulantes e acabou incendiada em 2006. A antiga pousada onde paravam os tropeiros foi ao chão e o terreno abriga agora uma unidade de saúde. A Sociedade Beneficente Tranqueira agoniza.

O casarão colonial dos Stocchero, na beira da estrada, virou lenha e abriu espaço para um posto de gasolina. Do moinho dos bijus, nem farelo. Os primeiros fornos para queimar pedra calcária tiveram o mesmo destino, deixando o distrito cada vez mais pelado de memórias. Nem o Cemitério de Tranqueira escapou à sina. Havia ali túmulos da época em que o Paraná começara a existir, mas nenhum deles guarda resquícios da arquitetura original.

Não é dos males o pior. O marco-zero de Tranqueira – uma área de invernada em que os animais conduzidos pela tropa ficavam protegidos – se resume agora a um pálido olho d’água, cercado de mato. Identificá-lo é tarefa possível apenas para veteranos como seu Mingo, que cresceu ouvindo falar que foi naquele pedaço de terra que tudo começou.

A versão mais aceita é que quando os tropeiros chegavam para o pernoite, atravessavam o Rio Barigui com água até as canelas e guardavam atrás das cercas as levas de gado, mulas, porcos e até de perus. Para se certificar de que os peões tinham feito bem o serviço, um capataz berrava, causando eco nos vales de Almirante: "Fechou a tranqueira?" Pois Tranqueira ficou.

Caso algum tranqueirense decida "imaginar como era", só lhes resta olhar para a casa de lambrequins do francês Jean Geneviève, um dos tantos estrangeiros que escolheram o distrito para viver e morrer. Ou para a Fábrica da Banha do polonês Stanislau Mikala, fechada pela Vigilância Sanitária na década de 1980, mas as letras em relevo na fachada estão tal e qual. Vale uma foto na frente, com legenda: "Estive em Tranqueira e lembrei-me de ti". Não duvide de que alguém o faça.

Em páginas

Almirante Tamandaré é tema de duas pesquisas históricas

Até o final deste ano, Almirante Tamandaré vai ganhar duas publicações sobre a história do município. A primeira vem de uma pesquisa inacabada, desenvolvida pelo poeta e historiador diletante Harley Clóvis Stocchero, morto em 2005. Os Stocchero figuram entre os clãs tradicionais do antigo distrito de Tranqueira, o que garante na obra destaque para a localidade. Familiares se encarregaram da finalização do projeto, intitulado Raízes Históricas de Almirante Tamandaré.

O segundo livro – Município de Almirante Tamandaré-PR: uma história em constante construção, de autoria do historiador Jorge Antônio de Queiroz e Silva e da jornalista e antropóloga Zélia Maria Bonamigo – é uma obra de fôlego, com cerca de 700 páginas, resultado de quatro anos de garimpagem e cerca de 60 entrevistas em profundidade. Enquanto Harley Stocchero se baseia na documentação oficial disponível na cidade, a dupla Jorge e Zélia investe também nas narrativas orais – tendo inclusive ouvido os veteranos de Tranqueira.

Origens

As origens de Tamandaré remontam a meados do século 19, quando se chamava Freguesia de Pacatuba e, posteriormente, Vila Conceição do Cercado. O nome atual coincide com o início da República. O que mais atrai os historiadores é a posição da cidade no vaivém dos tropeiros, vindos da Colônia Açungui, no Vale do Ribeira. Ao contrário do que se propala, a relação com o tropeirismo gaúcho se deu de forma pouco intensa.

Uma das descobertas dos pesquisadores é que os trajetos pelos interiores das colônias eram mais variados do que se afirmava até então, derrubando a tese de que a região era isolada. Um dos caminhos levava a onde está hoje o bairro Ahú, em Curitiba. "Havia grande procura de porcos para engorda, o que gerava ligações entre um ponto e outro da região. Não eram roteiros oficiais", diz Zélia.

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Vida e Cidadania | 3:59

Conheça a história de Tranqueira, bairro de Almirante Tamandaré, que já foi passagem de tropeiros do Paraná.

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