Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Olho da rua

Um lugar entre a praça e o asfalto

Detalhe da garrafa de whisky que foi vendida pelo equivalente a R$ 110 mil | Reprodução
Detalhe da garrafa de whisky que foi vendida pelo equivalente a R$ 110 mil (Foto: Reprodução)

Curitiba está em obras e a população anda meio confusa diante de tantas placas de desvio no meio do caminho. "Atropelado" por um milhão de carros que passam em quatro binários, uma BR que vai virar avenida e por praças violadas, o curitibano já não consegue afirmar, com a segurança de praxe, que vive na cidade das grandes soluções urbanísticas. A capital, para muitos, ficou igual a todas as outras, como apura estudo do instituto Paraná Pesquisas, feito em parceria com a Gazeta do Povo, de 16 a 18 de setembro.

Os resultados apontam uma cidade partida. Entre os 482 entrevistados, raramente uma resposta ultrapassa 50% das opiniões. Sobre como será o futuro, por exemplo, há empate técnico: de 23% a 30% dos abordados oscilam entre a crença de que Curitiba vai conseguir manter seu diferencial e a certeza de que enfrenta, sem muito sucesso, os mesmos dilemas de qualquer cidade do mesmo porte, incluindo violência (26%) e trânsito infernal (25%).

Fiéis a uma imagem consolidada nas décadas anteriores, 23% dos entrevistados ainda afirmam viver na cidade-modelo. É o caso do auditor fiscal da Receita Federal Luiz Omar Gabardo, 49 anos. Montanhista e ativista do meio ambiente, ele tolerou as demoradas obras da Marechal Deodoro, onde trabalha, e se sente recompensado. "A cidade é um organismo vivo. Os desafios que enfrenta hoje são muito ricos. Mesmo que as respostas não sejam 100%, vamos continuar sendo uma referência em urbanismo", opina.

Outra bola dividida é em relação a Curitiba e região metropolitana. A conurbação já atinge a assombrosa marca de 3 milhões de habitantes e há indícios de que seja a que mais cresce no país. Mas não há acordo sobre como serão as relações com a vizinhança daqui para frente, embora, como percebe o pesquisador de Gestão Urbana, o arquiteto Fábio Duarte, da PUCPR, a população já tem consciência de que vive numa "região polarizada pela capital." É praticamente igual a fatia dos que acham que a capital vai manter sua identidade e a dos que apostam que formará um bolo só com São José dos Pinhais e Araucária, entre outras.

A pesquisa também avança sobre o que muda na mentalidade da população diante de um número tão grande de homens e máquinas trabalhando. Só na Linha Verde são 500 operários. A questão é saber se tanto asfalto e trânsito deixaram o curitibano mais nostálgico do que já é. Os resultados são reveladores: 60% dos entrevistados sentem falta da cidade de dez anos atrás, principalmente porque se dizem acuados pela violência – um agravante para 64% dos consultados. Mais de 51% acham que a cidade é grande demais, ainda que 48% achem que Curitiba mudou para melhor. Não é a única contradição.

No local em que 68% afirmam andar de ônibus, 51% dizem que prefeririam se locomover de carro. Definitivamente, o curitibano está em crise diante do que é e do que acredita ser. O fenômeno chama atenção do historiador e arquiteto Irã Dudeque, professor da PUCPR. Para ele, todo esse "ser ou não ser" começa no próprio poder público, que não deixa claro de que lado está. O povo segue atrás. Elogia quem pega ônibus e anda a pé, mas resiste em mudar de atitude. "O pedestre vira uma espécie de bom selvagem, um tipo ideal, mas que poucos estão dispostos a ser", resume Irã, sobre o cidadão que pede mais calçadas, mas não perde a chance de colocar a chave na ignição – mesmo que seja para ir à padaria.

Os saudosistas

O cientista social Walmir Brandão, 64 anos, já escreveu mil páginas sobre o bairro onde passou grande parte de sua vida, o Santa Quitéria. É saudosista com registro em cartório, mas não do tipo que solta desaforos contra as máquinas da prefeitura. "Só quando precisa", brinca, a propósito de sua revolta com a construção de uma unidade de saúde em plena praça do bairro, ano passado.

A indignação já passou. O que não passa nunca é a nostalgia de Brandão diante de uma Santa Quitéria que envelheceu e se tornou corredor para os bairros vizinhos, deixando para trás parte do encanto daquele que foi o mais notável núcleo operário da capital. "Perdemos nossa identidade", lamenta. "Cada vez que volto a um lugar ele me parece diferente."

No bairro vizinho, a Vila Isabel, a líder comunitária Kátia Zilli, 42 anos, partilha dos sentimentos de Brandão. Pequena, acolhedora e resistindo heroicamente ao crescimento desmesurado do seu entorno, a vila tem se tornado cada vez mais um cenário de engarrafamentos ao cair da tarde. "É insuportável. Tenho a sensação de que a vila está sendo engolida. Não posso imaginar um bairro sem relações interpessoais."

Os assustados

A professora de guarani Olga Herrera, 32 anos, bem poderia redigir um manifesto para denunciar de que males padece o Centro, bairro onde mora. Ali há poluição sonora em tempo integral, problemas crônicos de segurança, sem dizer que a região sofre os efeitos imediatos do trânsito superlativo da capital. Estima-se que até 30% da frota de um milhão de automóveis ganhe as ruas todos os dias, tendo o Centro como escoadouro principal.

"É impossível atravessar na faixa de pedestres da Alferes Poli, próxima à Santa Casa", exemplifica Olga. Mas nada a assusta mais do que a violência, a ponto de sugerir que se instalem câmeras, urgente, na Praça Rui Barbosa. A professora figura entre os 64% de atônitos com a violência identificados pela pesquisa.

O mais curioso é que Olga, natural do Paraguai, está há apenas oito anos em Curitiba. Com tão pouco tempo de casa, quem diria, ela já está com um pé em outro grupo – o dos saudosistas da cidade de outrora.

Os críticos

O mestrando em Filosofia Jorge Brand, 27 anos, membro do coletivo Interlux Arte Livre, é implacável em relação aos rumos tomados pela cidade. O ativista figura entre os 32% que acham que Curitiba piorou ao favorecer os carros em detrimento dos pedestres – apesar do poder público alardear o contrário. "Caberia perfeitamente uma ciclofaixa na Avenida Marechal Deodoro. Mas as bicicletas não estão nos planos", ilustra.

A bike não é a única arma de Jorge. Para ele, Curitiba não só anda sobre quatro rodas como deixou às moscas vastos espaços culturais, como o Centro Velho. "Em troca, ganharam impulso as áreas de segurança, como os condomínios fechados e os shoppings. Esses lugares dão uma falsa ilusão de proteção", provoca, confirmando parte dos dados da pesquisa: 17% dos entrevistados disseram ter deixado de ir ao Centro e 16% riscaram os parques da cidade de seu caderninho.

Paulo Cezar Santos Rodrigues, 55 anos, presidente da Associação dos Corredores de Rua de Curitiba (Acorba), partilha de algumas posições de Jorge, com a ressalva de que acredita no sucesso das intervenções da prefeitura. "A Linha Verde vai ser tão importante quanto as canaletas. O problema é que são obras eleitoreiras, muitas vezes feitas pela metade. A ação pública ainda privilegia lugares onde moram ‘os bacanas’", diz Paulo.

Os reticentes

Dia desses, o caingangue Alcino de Almeida, 51 anos, vice-cacique da Reserva Cambuí, no bairro do Uberaba, teve de dar uma de guia de turismo e acompanhar uma prima gaúcha pelas ruas de Curitiba. A visitante queria andar num daqueles "ônibus um grudado no outro", conta. Alcino acha esse interesse muito natural. Para ele, a capital do estado ainda é um lugar diferente de todos os outros – a exemplo do que pensam 30% dos entrevistados pelo Paraná Pesquisas.

Mas Alcino tem lá suas reservas. Curitiba lhe parece ter uma soma escandalosa de carros e descuida do meio ambiente a olhos vistos. O líder indígena fala de cadeira. Dos 23 alqueires do Cambuí, apenas um é usado para moradia. O entorno foi todo reflorestado com 10 mil mudas de espécies nativas. "Mas o que vemos por aí é o contrário disso. Nós indígenas temos muito a ensinar a vocês", comenta.

A categoria "reticente" abriga também o líder comunitário Aloíze Gogola, 62 anos, presidente da Associação de Moradores da Vila São Pedro e Adjacências. Ele está de olhos bem abertos para a evolução da Linha Verde, obra que toca diretamente sua comunidade – além de ter aumentado sua volta para casa de 30 para 50 minutos. Gogola aplaude a iniciativa, mas confessa ter dúvidas se o projeto vai ser mesmo capaz de integrar os dois lados da cidade. "Tenho a impressão que tudo é meio atropelado e que não vai ser definitivo", arremata.

Os entusiastas

O guia de turismo Luiz Carlos Passos, 64 anos, é praticamente um veterano de guerra quando o assunto é Curitiba. Ele nunca circula menos de 60 quilômetros por dia na cidade, sempre em companhia de turistas duplamente extasiados: com a beleza da cidade, particularmente o Jardim Botânico – ponto mais admirado pelos visitantes – e com os freqüentes engarrafamentos. "Ficou inevitável falar do um milhão de carros", contra, sobre o assunto que é um misto de orgulho e de horror.

Por força do ofício, Passos acompanha pela janela do ônibus as transformações urbanas recentes. E não se aflige. "Temos bons técnicos e tradição urbanística. Minha intuição é a de que vamos continuar nos destacando pelo menos até 2020", profetiza o homem que se encaixa nos 30% de otimistas da pesquisa.

É também pela janela do ônibus que a bióloga Cristina Portela, 39 anos, faz seu balanço da Curitiba mutante. Há pouco mais de um ano, ela instalou um museu de zoologia num velho coletivo. Desde então, já viajou 160 mil quilômetros. Dentro da capital, em 2007, visitou 60 escolas. Os dias e noites na boléia, para ela, não enganam. "Não tem como fugir de tanta obra. Viajo muito por aí. É difícil encontrar um lugar tão bom como Curitiba", ilustra a representante dos 51% que identifica a capital como uma cidade grande – o que tem o seu preço.

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.