
Universidades são um legado do período
Por que "Idade das Trevas"?
O uso de esqueletos e de figuras da morte é algo corrente na Idade Média. A historiadora da Unicamp Néri de Barros Almeida explica que o historiador francês Jean Delumeau verificou que o final da Idade Média foi marcado por grandes medos, em especial o medo da morte. "Esses medos tinham diversas origens, sendo uma delas a crise provocada pelas fomes, pestes e guerras dos séculos 14 e 15."
Estudando séculos medievais anteriores a esse momento de crise, um outro medievalista francês, Philippe Ariès (1914-1984), viu um mundo diferente, marcado por uma relação tranquila e cotidiana com a morte. Os cemitérios ficavam no coração da vida social, no terreno das igrejas. "A boa morte era a morte longa, durante a qual o moribundo podia dizer suas últimas palavras e receber orientações espirituais. Este historiador das atitudes diante da morte mostrou o quanto o homem moderno mudou nesse quesito, ao tornar a morte obscena, retirando-a da vida corrente e isolando os doentes."
Saiba mais
Três pontos que podem mostrar o quanto a Idade Média está longe da ideia que fazemos dela:
Visão distorcida
> A ideia de que a Idade Média surge em uma ruptura radical com o mundo antigo pode ser contestada se lembrarmos que um dos fenômenos fundamentais no período medieval é na verdade antigo, a Igreja e o modelo de sua relação com os poderes laicos.
A Igreja moderna, comprometida e muitas vezes à reboque das políticas de fortalecimento dos estados nascentes, foi muito mais violenta do que a Igreja medieval. Conforme lembra a historiadora Néri de Barros Almeida, "o Tribunal Papal de Inquisição foi estabelecido por volta de 1230, mas foi nos séculos 16 e 17 em plena modernidade que as fogueiras arderam em maior volume e frequência. A modernidade é o momento em que observamos as ações mais atrozes da Igreja."
Liberdade
> O conceito de hoje, de que ir para um mosteiro é clausura, tem outro significado na Idade Média. As mulheres que não queriam se casar podiam escolher viver em um mosteiro. Lá, elas poderiam continuar a se dedicar aos livros e à espiritualidade. "O sagrado era relevante para o medievo. Além disso, é importante lembrar que foi a igreja da Idade Média que introduziu a ideia de consentimento. O que quer dizer que a mulher passou a ser consultada antes do casamento. Claro que, se o pai dela pedia, ela não iria negar de se casar com quem a família desejasse. Mas foi uma abertura", diz a historiadora Marcella Lopes Guimarães.
Parecidos
> O livro Ano 1000 ano 2000 na pista de nossos medos, do historiador francês Georges Duby, que se pergunta sobre o que as pessoas temem hoje e o que temiam na Idade Média, mostra que a miséria, o outro (o indivíduo diferente, de outra cultura), as epidemias e a violência eram aspectos temidos na época e ainda são temidos hoje. "A população do medievo era camponesa e tinha medo de passar fome, porque dependia da natureza. E hoje não é igual? Apesar da boa engenharia alimentar que temos, ainda existem muitas pessoas que morrem de fome", afirma Marcella. O medo ao outro, do diferente, também existia e existe hoje.
A grande dificuldade para se pensar a Idade Média é olhá-la com a visão de mundo que temos hoje. Segundo duas especialistas do período, o melhor não é buscar similaridades com o presente, mas pensar que aquele mundo era diferente. Não havia um conceito de democracia e a população não se identificava como nação, termo que, na época, era usado para denominar grupos que frequentavam universidades. Também não existia patriotismo ou vínculo com a terra: o povo e os cavaleiros lutavam pelo seu senhor. E a palavra cultura tinha um sentido meramente agrícola, de cultivar a terra.
"A cultura medieval não pode ser avaliada pelos critérios que aplicamos à nossa", resume a historiadora Néri de Barros Almeida, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ela destaca que, na Idade Média, o poder estava atrelado à ideia de evolução espiritual. "O poder na Idade Média se declara responsável pelo progresso espiritual daqueles que lhe estão submetidos. Na ideologia política dominante de então, não faz parte das atribuições de governança a orientação do progresso cultural da sociedade como o entendemos, ligado, por exemplo, a um sistema universal de ensino", diz. A educação cabia à Igreja, que também se ocupava do cuidado das almas.
Na maioria das vezes, razão e fé estavam entrelaçadas. "Pode até haver uma distinção entre as duas no sentido de considerar a razão teológica e a razão empírica, ou seja, um conhecimento empírico de mundo distinto do conhecimento teológico de mundo", afirma Néri.
Peste e guerra
Esse período de mil anos (476-1453), que vai da queda do Império Romano à conquista de Constantinopla pelo Império Otomano, é marcado pelo domínio da Igreja e tido por muitos como uma "Idade das Trevas". Uma visão simplista: como existem mais documentos que retratam o fim do medievo, por volta dos séculos 14 e 15, o que mais se perpetuou foram as lembranças da peste negra, da Guerra dos Cem Anos (1337-1453), da queda de Constantinopla e do Cisma do Ocidente (entre os século 14 e 15, quando o mundo cristão chegou a ter três papas).
"O que aconteceu no final [da Idade Média] foi realmente horrível. Dizem que a peste negra ceifou dois terços da população de Paris. Parece um exagero, mas vemos que foi avassaladora. O que não dá é reduzir o período a isso", afirma a historiadora Marcella Lopes Guimarães, da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Esquece-se, por exemplo, que na Idade Média surgiram as universidades e a imprensa. Além disso, foi um período de produção cultural bastante diversificada: a arquitetura gótica, que levava as catedrais às alturas; poemas de amor que animavam romarias e namoros; e peças de teatro apresentadas em vilas e castelos.
A novela anônima Sir Gawain e o Cavaleiro Verde é do medievo, assim como várias outras chamadas de cavalaria, como as escritas sobre a Távola Redonda, o Ciclo Arturiano e o Santo Graal. "Todos conheciam poesia. Mas a sua leitura era pública e não privada, com um livro na mão no próprio quarto", explica Marcella. "A Idade Média é muito mais oral e gestual, até porque a maioria das pessoas, nobres ou não, não sabia ler."
Leigos
E não eram apenas as pessoas da Igreja que produziam cultura: as monarquias que se formavam precisavam de médicos, advogados e notários e tiveram indivíduos que trabalharam na corte e escreveram peças, romances e poemas, sem pertencerem necessariamente ao clero. "Havia também clérigos que viviam nas cortes [alguns gostavam mais de estar ali do que nas igrejas] e produziam crônicas e novelas de cavalaria, e que tinham o amor no centro das preocupações", diz Marcella. "E olha que não era o amor religioso, era amor homem e mulher, o amor profano."
Há também a produção da Falsafa, da filosofia árabe, que está ligada ao Islamismo e não ao Cristianismo. Eles traduziram a filosofia de Aristóteles (384 a.C. 322 a.C) muito antes do Renascimento. "Avicena foi um filósofo muçulmano cujas obras foram estudadas durante a época moderna nas universidades de Medicina", lembra Marcella.
"A produção não é voltada para a Igreja, mas produzida por ela", recorda Néri Barros de Almeida. A Igreja toma as rédeas dessa cultura por ter mais condições materiais. Hoje, boa parte da produção cultural tem a ajuda dos poderes públicos para sua preservação. "Na Idade Média esse papel é desempenhado pela Igreja que, evidentemente, como instituição religiosa, tem interesses bem diferentes da política cultural do estado laico moderno", diz a historiadora da Unicamp.
Isso não quer dizer, segundo a historiadora, que a Igreja tenha monopolizado a cultura ou sufocado as formas de expressão. "Significa dizer que a parte da cultura global que é alvo de ações que visam sua preservação é justamente aquela relacionada às elites letradas, em especial à Igreja. Hoje a preservação cultural também passa pela deliberação das elites, mais próximas ao poder."
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