Castigos incluíam bolas de ferro, mas eram usados com cautela
Imagine uma ilha com cerca de 1 guarda, ou soldado, para cada 10 presos. Seria impossível controlar a fúria de homens totalmente isolados no mundo, não fosse o jogo de cintura do comandante militar, além das possíveis punições para quem ousasse transgredir. A bola de ferro nos pés de quem descumprisse as normas era o primeiro castigo. Se não resolvesse, ou se a desordem merecesse uma punição ainda maior, o preso ia para a solitária da Fortaleza dos Remédios e lá ficava enclausurado pelo tempo necessário. "Chamo isso de cárcere dos cárceres. O cidadão já está isolado e passa a ficar ainda mais.
Posso lhe garantir, porém, que os castigos foram poucos. Estudo o assunto há 11 anos e imagino que as punições (ou torturas) não eram constantes. Acredito que o comandante sabia mesmo usar o poder sem torturar", afirma a historiadora Grazielle Rodrigues do Nascimento.
Os presos comuns saiam do continente com a ordem de usar a bola de ferro nos pés, mas chegavam à ilha e o comandante as tirava, guardando-as para usar apenas em casos extremos. "Se ele fizesse tudo o que a lei do continente mandava, provavelmente o comandante seria um homem morto. Acredito que fazia vista grossa a certas punições mais como um jogo político com os presos", diz Grazielle.
Além da solitária da Fortaleza, presos perigosos e infratores poderiam ir para uma ilha pequena, próxima a Fernando de Noronha: a Ilha de Rata que leva este nome justamente porque tinha muitos ratos. Quando um preso ia para lá, ficava sob a guarda de um soldado. Um dos revoltosos da Praieira, Antonio Borges da Fonseca, ficou três anos na Ilha de Rata e, segundo Grazielle, mesmo estando totalmente isolado do mundo, ele conseguiu subornar os militares e enviar cartas ao continente, publicadas em jornais da época. Para desordens mais leves, os guardas também recorriam ao castigo da prancha (surravam os presos com o objeto) ou às chicotadas.
Parece que eles estão de férias. Mas os homens das fotos nesta página que aparecem de sunga, pescando ou lutando capoeira são, na verdade, prisioneiros e estão pagando a pena por cometer crimes principalmente de homicídio, desordem pública e falsificação de moedas (sem contar os presos militares e políticos). Apesar da periculosidade que apresentavam, os presos que eram enviados para a ilha de Fernando de Noronha viviam literalmente no paraíso. Ficavam soltos e tinham casas; os mais comportados conquistavam a premissa de levar junto a família e poderiam, ainda, pedir autorização ao comandante militar da ilha para sair, pescar, ir ao clube e à igreja. "Os muros da prisão eram o próprio oceano, porque não havia para onde ir. O presídio funcionou em Fernando de Noronha de 1737 a 1942", conta a historiadora Sandra Veríssimo, que faz parte do Centro de Informação de Fernando de Noronha.
Como a ilha fica a 345 quilômetros do continente, era praticamente impossível fugir do local. Até houve presos que tentaram a fuga construindo canoas com a madeira do mulungu. "Como era a árvore mais alta da ilha, alguns presos começaram a cortá-la para fazer embarcações. A madeira desta árvore, porém, parece uma esponja e, por causa disso, depois de alguns quilômetros remando, o barco encharcava e naufragava. Os documentos falam de presos que sumiram e nunca mais foram encontrados, provavelmente porque morreram afogados nesta tentativa de fuga", afirma a noroense e historiadora Grazielle Rodrigues do Nascimento.
Sandra lembra que, antes de levar os primeiros presos para a ilha, houve a preocupação de cortar as árvores mais altas que poderiam virar embarcações (sem contar a mulungu, pois entendidos já sabiam que ele era como uma esponja). Foram ainda os primeiros presos que chegaram à ilha que construíram as casas para moradia, a sede administrativa da prisão e a fortaleza afinal, a ilha só era inabitada porque os franceses já haviam sido expulsos.
Escravos
Ainda é um mistério a presença de escravos na ilha durante o período prisional. Grazielle, porém, acredita que alguns deles chegaram como serviçais dos militares, mas uma parte pode ter ido para Noronha depois de descobrir que lá havia uma liberdade aparente que eles nunca teriam no continente. "Ainda não está confirmado, mas acredita-se que alguns escravos cometeram crimes no continente para serem julgados e enviados à ilha. Parte deles pode ter conseguido, mas outra deve ter sido morta pelos seus donos ainda no continente", diz. A historiadora pesquisa ainda a presença das mulheres na ilha. Prostitutas iam como criminosas, mas havia também as mulheres dos presos, chamadas de paisanas. "Se hoje existem 10 homens para uma mulher na ilha, imagine na época. Por isso regras de comportamento foram criadas para evitar confusões", explica Grazielle.
Foi graças ao trabalho de recuperação de 50 mil documentos (nem todos concluídos) que o cotidiano da prisão pode ser conhecido atualmente os descendentes dos presos que vivem na ilha nos dias de hoje não gostam de falar sobre o assunto. Até o ano que vem, historiadores que trabalham na conservação e limpeza dos documentos prometem criar um site na internet para que os documentos, depois de digitalizados, sejam pesquisados no mundo todo. Hoje os papéis e fotos estão sob administração do Arquivo Público de Pernambuco.
Povoação
Por ordem do império português, em 1737, a província de Pernambuco deveria encontrar uma forma de ocupar a ilha para que a coroa não perdesse estas terras. Antes disso, a ilha tinha sido dada ao navegador Fernão de Loronha (por isso o atual nome da ilha), que patrocinava navegações ao Brasil. Uma barco dele teria naufragado na região, então o rei de Portugal teria doado a ilha como um presente. Loronha, porém, nunca chegou a conhecer o local, por isso os portugueses queriam que a ilha fosse ocupada. Como não havia pessoas interessadas em morar em um lugar totalmente selvagem, os pernambucanos resolveram mandar para lá degredados e assassinos, como uma maneira de excluí-los da sociedade. Os presos tinham horário para acordar e dormir, respondiam chamada e deveriam trabalhar para a própria subsistência.
Além de presos comuns, a ilha recebeu presos políticos e militares: da Revolução Farroupilha, da Cabanagem, da Revolta Praieira, comunistas e integralistas, incluindo o terrorista Carlos Marighella. Em 1942, Getúlio Vargas declarava Fernando de Noronha território federal. Terminava a prisão política, mas os presos comuns permaneceram lá para "servir" aos militares que se instalaram na ilha durante a Segunda Guerra Mundial. Em 1964, após o golpe militar, novos presos políticos foram mandados a Noronha (mas desta vez ficaram encarcerados); entre eles estavam Miguel Arraes e César Dória.
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