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Túnel | Áu­rea Mullich
Túnel| Foto: Áu­rea Mullich

Sinto um gelo secular, quem sabe de outras vidas, de imemoráveis encarnações apenas suspeitadas, que nem mesmo ao sol consigo me aquecer. Volto do cemitério para a casa, agora sem dona, com o passo arrastado de quem não tem pressa de chegar. Não é a primeira vez que percorro esta estrada, mas antes nunca me pareceu assim, tão estranha. Há poucas habitações às margens, aqui e ali uma tapera de pau a pique, as chaminés fumegando, cheiro de café e broa exalado pelos vãos. Árvores secas, quintais mal cuidados escondidos em mato, tudo me faz pensar nas histórias que ouvi na infância, os espectros dos recém enterrados querendo voltar ao convívio dos familiares, mas, apegados a seus corpos nas tumbas, quedam-se a meio caminho e ficam vagando neste lugar. Tenho a sensação de que a estrada se transforma em estreito corredor, subterrâneo e gélido. E, apesar do frio, o suor umedece a minha pele sob o agasalho.

Passos lentos, cadenciados, evitam os buracos entre os paralelepípedos irregulares, lustrosos e gastos, que agora revestem o pátio de um castelo. Não reconheço a paisagem. Terei me desviado, em alguma das muitas vielas e encruzilhadas, distraída em pensamentos?

Um cachorro late à minha passagem. Distante, o relinchar dos cavalos sendo tratados nas baias. Sons familiares, mas não de agora, e me esforço para localizar essa memória esgarçada. No campo, por trás de um galpão de madeira, o bando de corvos disputa o milho de espigas mirradas.

Abro a gola do casaco deixando o peito ao vento, como se com isso facilitasse a respiração. O ar, varando os músculos, em nada me alivia.

Às minhas costas, a terra vermelha da sepultura da velha é o lacre definitivo, assegurando que não há volta. Não há resgate ou segunda chance, ou qualquer coisa que possa ser mudada. O que tinha que ser, já foi. Todas as palavras, todos os gestos, tudo está esgotado. Não há mais interlocutor.

Apresso-me, quando o sol indica que as horas já estão avançadas. De longe, vejo a casa. O portão pende das dobradiças enferrujadas, à espera de conserto prometido há anos.

Retribuo o aceno da vizinha da frente. Seu rosto, uma sombra como as que caminham comigo, sua voz, fazendo coro com as que falam em minha mente.

Entro pela porta dos fundos que deixei apenas encostada. Não há o que roubar. Que ladrão iria querer levar pedaços dessa história, registros de nada, brancas lacunas de vidas sem sentido?

A velha está sentada no banco perto do fogão, costas curvadas, antebraços apoiados nos joelhos, cabeça entre as mãos, mergulhada em seu mundo de gemidos e suspiros. Não toma conhecimento da minha presença, perdida em si mesma, no refúgio nebuloso para onde se retirou em exílio voluntário há muito tempo. Como pode estar aqui? Não era ela que me contava do lugarejo, entre o cemitério e a cidade, limite imposto às almas dos que não se reconheciam mortos? Ela se exclama. Que vida a minha, meu Deus, que vida a minha! Passo sem responder. Não sei que vida a dela, nem mesmo sei de mim.

No banheiro lavo as mãos com demorado prazer, ensaboo bem, até formar uma espuma macia, retirando qualquer vestígio da Casa dos Mortos, hábito que ela me impôs desde criança. A água gelada revigora-me. Com a toalha seco o suor do pescoço e do peito, e quando levanto a cabeça dou com as duas no espelho, a velha e eu, naquele pequeno retângulo na parede.

É preciso que me apresse, se tenho a intenção de partir antes que me enrede outra vez. Percorro a casa querendo encontrar meus objetos. Não sei bem o que procuro. Sempre fui, eu mesma, pertencente a este lugar, um utensílio como tudo mais. Abro as portas, cômodo por cômodo, talvez haja algo que possa resgatar dos meus escombros.

No quarto dela, a cama de ferro trabalhado, passada de geração a geração, coberta pela colcha de retalhos onde uniu batizados, casamentos, aniversários e formaturas, com miúdos pontos, cá e lá tingida do sangue de seus dedos, furados pela agulha. Sobre a penteadeira, suas rezas. O Santo Antonio da devoção, desbotado e com pequenas lascas que desfiguram o Menino em seus braços. Um Jesus ferido antes mesmo da crucificação. Ainda a ouço, enquanto recitava suas ladainhas quando eu era pequena e pedia: Senhor proteja a minha menina, livra-a do mal, amém. Depois, passou a rezar por si mesma, gastando suas súplicas com pedidos de socorro, como um náufrago na angústia do futuro curto e sem motivo. Envelheceu com pressa, entregou-se sem luta, como se não valesse à pena qualquer nesga de tempo.

Na prateleira, meus livros da juventude. Não vou levá-los. Durante décadas foram minha companhia, agora os liberto pelo abandono. Na sala de jantar as cadeiras se acomodam ao redor da mesa oval num silencioso banquete onde a minha memória se serve das lembranças. Por um momento sou eu ali, dilacerada, entre o tinir de brindes e molares.

O salão, à espera de visitas que nunca vieram, revestido de pedras, me dá arrepios. O tocheiro bruxuleante pregado à sua porta lembra que é tarde, devo apressar-me. Daqui a pouco vai se apagar e posso perder-me neste labirinto.

O espectro anda pela cozinha, mexendo nas panelas, atiçando o fogo, gemendo à cada instante.

Detenho-me no corredor entre os quartos. As paredes ainda guardam as sombras que meus dedos brincaram em noites antigas. Dos porta–retratos, desconhecidos me espreitam, espicham o olhar, seguindo-me. Danem-se! Sequer sei os seus nomes.

Na cantoneira perto da janela, uma folhagem mergulhada na jarra de vidro. Derramo-a no assoalho, se tem que morrer, que seja agora, não haverá mais quem reponha a água.

Dirijo-me para a porta com as mãos vazias. Pela primeira vez, experimento o silêncio. A velha calou-se. Continua andando pela casa, a boca move-se, mas não há som.

Empurro o portão, corro o ferrolho e saio para a rua. A vizinha acena e pergunta se volto para a missa. Sem me virar, respondo que não haverá missa.

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