Ainda passa carroça na Rua dos Hortênsias, em Piraquara, Região Metropolitana de Curitiba (RMC). Ali tem menino jogando pelada, rabiola de pipa no fio de luz. Qualquer veículo é o bastante para levantar poeira, “desgraça pouca” de quem pôs roupa no varal. Rara a casa que não tenha tijolo aparente – tudo parece “em obras”. Hortênsias? Nenhuma. É pura periferia, exceto por um detalhe. A ruazinha ganha a partir de hoje um teatro, para 210 pessoas. Não se fala de outra coisa por ali. Foi erguido em seis meses, com uma intenção fácil de adivinhar: levar cultura a um lugar onde o asfalto chega em prestações.
A obra tem autor – a Associação Beneficente São Roque. Nome – Teatro Frei Rui Guido Depiné. Custo – R$ 200 mil, dinheiro pingado, de doações a “vaquinha” na internet. Fica num ponto do mapa que muda tudo – o Guarituba. O bairro que ganha um espaço de arte abriga algo próximo de 50 mil pessoas, metade da população de Piraquara. Naquelas divisas, todos os índices se mostram superlativos.
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INFOGRÁFICO: Veja a localização do Guarituba
Algo como 80% dos terrenos são ocupações irregulares; 60% dos moradores têm menos de oito anos de estudo e média salarial familiar de 2,5 salários. O Guarituba é pobre, distante e violento – sua via principal, a “Betonex”, registra média de cinco homicídios por ano. Por isso os associados de São Roque estão lá e deram ao teatro o nome de “Frei Rui”. Questão de justiça.
Violência?
A psicóloga Ana Lúcia do Nascimento, 34 anos, coordenadora de programação cultural da Associação Beneficente São Roque, rejeita o rótulo de “comunidade violenta”, atribuída ao Guarituba. Ela conheceu o bairro ao prestar assessoria ao projeto Mulheres da Paz – ocupado de questões de criminalidade, gênero e cidadania . Acabou por se envolver com a ONG. “Aqui não é um lugar mais violento que outros. Aqui vivem pessoas”, corrige, de olho num mote: o maior problema é considerar a criminalidade como algo natural a determinados territórios. Pensar assim seria “o princípio da derrota”. “Daí fazermos pactos de convivência”, diz Ana, sobre os “combinados” com as crianças e adolescentes. A cultura da paz nasce das gentilezas cotidianas – ali incentivadas. Sem xingamento. Sem agressão. Eis a regra.
O frei
Há quem aposte não haver em todo o Guarituba uma pessoa que não conheça o franciscano Rui Depiné, o homem por trás do Hospital São Roque, especializado em hanseníase. Na tradição cristã, São Roque é padroeiro das vítimas de lepra. Na tradição do Guarituba, frei Rui é o protetor dos doentes e da ocupação, a maior da RMC. Quando tudo começou, em favela no meio da turfa, nos meados da década de 1980, Rui já atuava em Piraquara e se deslocava até o bairro que assimilou – à beira das nascentes de água – o inchaço populacional de Curitiba. Virou sua causa.
Os que acompanhavam o trabalho do religioso no hospital, sabiam de suas andanças pelo Guarituba. Alguns resolveram ajudá-lo, fundando a Associação Beneficente São Roque. Foi em 1988 e tinha pretensões administrativas. O frei precisava. O que era para ser uma “mãozinha” virou uma ONG que faz jus ao terceiro setor. “Tem horas que eu olho e me impressiono com o tamanho que a obra tomou”, reconhece a esteticista Márcia Aparecida Cruz Vicente, presidente da associação.
Não é exagero. A ONG salta aos olhos por dois motivos. 1) O grupo – formado por 20 pessoas – mantém um grande bazar de usados, de onde vem a maior parte de sua receita. As sobras de roupa, de material de construção e o que mais couber na lista permite que Rui continue atendendo os milhares que lhe pedem socorro, sem trégua. A parábola da “Multiplicação dos Pães” é pura verdade; 2) Embora tenha uma sede no Bacacheri, onde funciona o bazar, há sete anos a ONG praticamente se mudou para o paupérrimo Guarituba, precisamente na Rua das Hortênsias. Ali faz de tudo para 200 e tantas crianças e adolescentes dos 7 aos 17 anos. Se tiver um pouco mais do que isso, tudo bem. “Aqui a gente não dispensa ninguém”, brinca Márcia.
A Tina
Organizações sociais costumam ser hiperativas. É do ramo do negócio. A “São Roque” supera a média das outras. Tem ateliê de costura, distribuição de cesta básica para 170 famílias (723 pessoas), lista longa. Somando o organograma todo da ONG, entre 850 e mil necessitados são atendidos a cada mês.
Mas tem sobretudo cultura, com um particular: é cultura elaborada, padrão Belas Artes. Não raro o movimento social entende arte como “coisa para ocupar o tempo”, terapia para população vulnerável, atividade de contraturno. Os tarefeiros da ONG escolheram outro caminho – o da cultura como direito. “Nossa maestrina é paga. E é das boas”, comenta a ex-presidente Anna Thaís Fuck, ao se referir a Ana Cristina Lago, a “Tina”. A musicista traz no currículo a preparação do coral do HSBC. Quando pisa no Guarituba, os pequenos se agitam.
Tina não precisa mais ligar o GPS para chegar na Rua das Hortênsias. Nem ela nem o músico Rodrigo Olavaria Lara, para citar dois dos que lideram ateliês que ocupam a casa . O lugar ganha ares de usina de leitura, encenação e música. Muita música.
Serviço
Hoje (15), às 16 horas, na Rua das Hortênsias, 153, Guarituba, Piraquara (41) 3362-1249
Essa acabou sendo a marca do “São Roque”. O grupo de coro e orquestra Gato na Tuba, por exemplo. Hoje, na inauguração, os anfitriões são os cursistas de teatro – a turma do Alecrim. Em setembro, atores e cantores se unem para estrelar o musical A grande fábrica das palavras. Será apresentado no Guairinha. A intenção é convidar o público a dar um pulo no Guarituba, um lugar onde tem poeira, mas também um palco, pois cultura é de direito. A Orquestra Sinfônica de Heliópolis começou assim – o pessoal da ONG curte a comparação.
A pequena violinista do Guarituba
“Mãe, eu quero tocar violino”, disse Thaíza Dias, 13 anos, depois de assistir – na Associação Beneficente São Roque – a uma apresentação da filha da maestrina Ana Cristina Lago, a Tina. O pai de Thaíza é técnico em elevadores. A mãe, doméstica. A família vive no Guarituba, ocupação irregular de Piraquara que se tornou símbolo do Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC, mas que vê a regularização fundiária chegar “devagar, devagarinho”.
As chances da menina no orçamento familiar eram pequenas, mas nada que impedisse à mãe de contar à patroa que “a guria botou na cabeça que quer tocar violino”. Foi o que bastou para nascesse um mecenas. “Ela abriu um armário, tirou um violino que tinha guardado e me mandou de presente”. Thaíza é a violinista do Guarituba, e não está sozinha na nova onda. A irmã, Karina Dias, 17 anos, toca viola clássica e se prepara para prestar vestibular de Música.
Anda ocupada com os estudos, mas nada que a afaste das “Quatro Estações”, de Vivaldi, da “Segunda Sinfonia de Bach para Ciello”. “Adoro ‘Bela Adormecida’, de Tchaikovski, informa, em meio ao papo mais erudito da paróquia. A turma do Gato na Tuba – grupo musical formado por Tina e companhia, no Guarituba, segue atrás.
Tina evita apologias à arte redentora, ou discursos do gênero. Nos tempos em que atuou junto ao coral do HSBC, conta, “viu de tudo”. De quem se entregasse à música, sem reservas. De quem se esquecesse dela, sem problemas. No Guarituba não vai ser diferente. Mas não esconde sua surpresa diante do envolvimento de Thaíza e Karina. Como profissional da música, sabe que as meninas terão de pular muitas fogueiras, caso queiram viver de violas e violinos.
“O brasileiro com poder aquisitivo consome cultura, mas não estuda cultura. É um território difícil”, critica Ana Cristina.
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