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Memória

Um trem para as estrelas

A imagem que ilustra esta página é histórica. Nela estão 15 curitibanos que na década de 1940 se renderam a uma aventura que mudaria seus destinos – a escalada do Pico Marumbi, na Serra do Mar. Há poucos estudos a respeito, mas lá se vão 60 anos do movimento que ainda hoje leva dezenas de jovens a fazerem do "batismo de escalada" o melhor dia do resto de suas vidas. O silêncio em torno desse fenômeno está para ser rompido. Em agosto, sai o mais completo levantamento sobre o assunto, de autoria de Nelson Penteado, 59 anos, o Farofa, integrado à trupe tempos mais tarde.

O autor confirma o que era de se esperar: ao lado do fotoclubismo, outra febre dos anos 40 que atraía gente para a serra, a escalada ajudou a salvar a paisagem mais festejada do litoral paranaense. Para tanto, não precisaram de bandas e fogos de artifício, mas de uma espécie de "código de paixão", firmado entre os participantes. Ser montanhista é ser companheiro, é não depredar, é desejar estar em contato com a natureza, é não desistir jamais. Claro – as normas incluem passar um sabão em quem machucar árvores, sujar a mata e catar uma orquídea para dar de presente à vovozinha.

Simples como isso, tais leis criaram uma cultura ambiental à prova de tempestades, herdada de geração em geração entre os membros informais da "confraria do Marumbi". O encontro com os 15 veteranos confirma a força desse pacto de cavalheiros, respeitado mesmo quando a corda balança. E como balançava. A turma da década de 40 chegava lá em cima sem lenço e sem documento. Não havia equipamentos à venda – tudo era produzido artesanalmente, na cara, na coragem e na oficina do fundo do quintal.

O "era do improviso" só acabou quando entrou em cena Erwin Gröger, austríaco foragido do nazismo e empregado nas indústrias Klabin. Em 1947, num passeio de trem a Paranaguá, ele quase se atirou do vagão quando viu o Marumbi. Montanhista desde os 5 anos de idade, começou a fazer planos para aquela que seria a extensão de sua casa. E fez: foi considerado o segundo usuário mais antigo da Rede Ferroviária Federal S/A (RFFSA) no Paraná, tantas vezes viajou para lá, dando aulas e explorando rotas como a Fenda Grande, do Abrolhos. "Fiz os primeiros grampos de escalada da turma na minha forja. Tenho 83 anos de serviços prestados ao montanhismo", calcula, do alto de seus 95 anos. Não à toa, é chamado de "Professor". Não há explicações à mão para justificar o que levou gente como Gröger a esse casamento com a montanha. E na falta de uma, opta-se por uma causa secreta, comum de todos: o Marumbi não é o mais alto nem o mais belo, mas seus oito picos exercem uma estranha atração sobre todos os que um dia o encontraram.

É comum se emocionarem, saberem de cor a data da "primeira vez" e contabilizarem todas as subidas e roteiros com a precisão de um cirurgião. Ao todo, calcula Farofa, existem 200 veteranos, fora os mais de mil iniciantes que todos os meses provam desse mel.

Tradição

A tradição de escaladas na Serra do Mar é um capítulo à parte na história do lazer e da defesa do meio ambiente no Paraná. Lá se vão 126 anos da primeira ida ao Olimpo – ponto mais alto do conjunto de montanhas – por Joaquim de Miranda. "... uma época em que muitos subiam de terno e gravata", como lembra Farofa. Mas embora tenha se iniciado no final do século 19, facilitado pela construção da Estrada de Ferro Curitiba – Paranaguá, foi apenas na década de 40, em plena 2.a Guerra, que subir até lá virou um ritual de passagem.

Curiosamente, a maior parte dos aventureiros eram garotos de origem alemã. Não faltam Kaehlers, Bartz, Krohnlands e Stoltz na lista dos amantes do Marumbi. E muitos pagaram caro pelos sobrenomes germânicos, sendo fichados pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops) naqueles tempos ariscos. "Tinha quem achasse que eles iam lá para fazer contato por rádio com a Alemanha", lembra Nelson – com folga o pesquisador mais perseverante sobre a Serra do Mar. Ele investiga o sobe-e-desce ao Marumbi há nada menos do que 30 anos. Seu escritório, no Centro de Curitiba, é abarrotado de pastas com recortes de jornal e documentos sobre a serra – algo perto de 5 mil páginas.

Mas não se dá por satisfeito. "Quando penso no que ouvi desde que comecei a escalar, em 1959, quando tinha 12 anos, fico até triste. Deveria ter anotado tudo o que ouvi dos veteranos, nem que fosse num guardanapo. Hoje, teria muito mais informações", calcula o autor de As montanhas do Marumbi, um livro de 400 páginas com mapas, gráficos, informações técnicas, e, tão importante quanto, com um resumo da ópera. Uma ópera estrelada pelos astros da serra. Eles são muitos, do quilate do fotoclubista José Kalkbrenner Filho ou do incansável Henrique Schmidlin, o Vitamina, cuja gravata borboleta já se confunde à Serra do Mar.

Não raro, os montanhistas da primeira florada se tornaram cientistas de renome, como o octogenário Gert Guenter Hatschbach. Ao longo da vida, o mestre diante de quem os marumbienses fazem reverência coletou 70 mil espécies, descobriu e catalogou outras 550, sendo que 250 delas levam seu nome. No início da escalada intelectual de Gert está a escalada juvenil ao Marumbi.

Orgulho

O mesmo vale para o botânico aposentado da UFPR, o nipo-brasileiro Nobor Imaguire, 79 anos, que venceu o morro pela primeira vez em 1946. Lanterna, como ficou conhecido, calcula ter subido o Marumbi 36 vezes e o Pico Paraná 90. Ele fala de pesquisas que ainda faz com o mesmo orgulho com que conta ter convivido com o fotógrafo Helmut Wagner e com o aventureiro Rudolf Stamm – dois mitos da velha-guarda marumbinista.

O gosto pela ciência ficou mesmo para os que não se tornaram cientistas de cátedra, como o dentista e fotógrafo Carlos Renato Fernandes, 69 anos, o Tarzan Genérico. Depois de tantas incursões à serra, Carlos se tornou um botânico diletante. Ele é capaz de indicar nomes científicos com a mesma facilidade com que enumera lentes e filmes fotográfico. "A Saphronitis Coccineia é a orquídea típica da região", diz a Nobor, em meio à celebração em que se transformou o encontro de veteranos.

Festa, para eles, é regada a segredinhos do Marumbi, lingüiçadas na casa de Antônio Zinher, o Quinhentão, e planos juvenis de tomar o próximo trem para as estrelas.

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