Ele se chama Rosala Garzuze e habita o Templo das Musas. Se o nome e o local parecerem muito estranhos, espere até saber a idade do cidadão: 100 anos, uma proeza alcançada na última quinta-feira e com apagar de velas marcado para hoje à tarde, no Instituto Neopitagórico, onde está o templo. É quase um disparate explicar que fica na Vila Isabel e que se trata de uma daquelas coisas que só existem em Curitiba. Mas como diz o próprio aniversariante, essa história é conhecida no mundo inteiro. Menos aqui. Às falas.
Há quase oito décadas o médico Rosala Garzuze libanês de nascimento dirige o Instituto Neopitagórico, criado em 1909 pelo mítico professor Dario Vellozo, expoente do movimento simbolista no Paraná. Sua adesão ao clã se deu às passadinhas. Rosala foi aluno de Vellozo no Ginásio Paranaense, em 1921. O garoto de calças curtas mal podia acreditar que alguém tão fantástico existisse fora de algum conto das "Mil e Uma Noites". "Era orador, filósofo, contista... Meu inspirador. Mas nem me notou na sala de aula. Fui um menino muito tímido", lembra.
Como amigo é para essas coisas, anos depois um colega de ginásio arrastou o encaramujado Rosala até a chácara da Vila Isabel o "retiro saudoso" em que Dario construiu uma trincheira até hoje intocada. Saltaram do bonde no Armazém do Fruet, na República Argentina e desceram a pé até o templo. Foi um dia para não esquecer. Na ocasião, o jovem Rosala estava hipnotizado por uma idéia a de botar os olhos na Enciclopédia de Diderot e DAlembert, aquela que deu origem à Revolução Francesa. "Ficava pensando se esses livros existiam mesmo." Não só existiam como viraram um bom motivo para uma visita e outra ainda. Numa delas, de olho em algum verbete da enciclopedye, o visitante se enamorou de Carmen, filha de Dario, com quem se casou em 1932. Da união nasceram Sumakê, Atamis e Marian. Com a morte do sogro, em 1937, o ideal de reviver a cultura grega, entre outros refinamentos simbolistas, já tinha um herdeiro natural.
Hoje, Rosala é sinônimo do instituto, ao qual se dedica com o vigor dos verdes anos, ajudado por duas sobrinhas Rhadail, da parte dos Vellozo e Elisabeth, da linhagem dos Garzuze. Começa às 9 da manhã, com pausa para o almoço, e segundo tempo na parte da tarde. O estudioso também mantém sete cursos por correspondência.
Além de estudioso e ocupado demais para vestir pijama de flanela, o longevo Garzuze é uma senhora conversa, a anos-luz da timidez juvenil que atrasou em alguns meses seu desembarque anunciado no Templo das Musas. Ele rejeita o rótulo de mero curioso, ao qual chama de "vício pernicioso", além de uma sina que ronda os neopitagóricos, muitas vezes injustamente confundidos com ledores de almanaque, que sabem papagaiar de tudo um pouco. "Tem de pesquisar um tema e ir à fundo. Eu acompanho a marcha da evolução humana", diz o professor aposentado da cadeira de Patologia Geral na UFPR. Mas aceita a pecha de interessado qualidade que conquistou graças, também, àquelas deliciosas conspirações do destino.
O pai, Assef Jorge, vindo da cidade de Gebel (conhecida como Biblos, olha só) para o bairro do Portão, era mascate e fazia tráfico de histórias dos sertões por onde andava. O filho de pouca conversa devia ouvir admirado. Quando o professor lapeano Arcírio Ribeiro, no grupo escolar, lhe deu de presente, em meados dos anos 10, um livro chamado "O Sherloquinho", um pouquinho do curiosíssimo Sherlock Holmes passou a circular no sangue do garoto que não sairia comerciante como os seus mas venderia alguma coisa, fatalmente. O encontro com Dario encerrou a conversa e Rosala virou uma espécie de mercador de conhecimento sem direito a férias. "Nunca fui de contar tempo", avisa.
A medicina, por pouco, não lhe foi um atalho perigoso. "Fui um aluno medíocre", diz. Recém-formado, chegou a ir para o interior. Ficou um mês em Irati e os melhores anos do resto de sua vida ali, na chácara de um quarteirão na Vila Isabel, perto de mais de três mil livros que compõem o acerto do instituto. E vai muito bem obrigado asseado, dono de um aperto de mão firme, esbanjando lucidez intelectual e um delicioso senso de humor. "Apesar da violência, o mundo de hoje é muito melhor do que o do passado. Há mais conhecimento exato, mais liberdade de pensamento, amor à infância e participação das mulheres." Palavra de Rosala uma das boas conversas do século.
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