Em breve, quando uma criança do Bom Retiro perguntar a seus pais por que o lugar onde mora se chama assim, não será mais possível respondê-la com um simples apontar de dedo, na direção dos altos da Rua Nilo Peçanha. O Hospital Bom Retiro cujo título acabou se estendendo também ao bairro será demolido nos próximos dias, depois de 67 anos de funcionamento. Não será fechado, como se chegou a alardear, mas transferido para uma nova sede, no Jardim Botânico, o que diminui apenas em parte o impacto de mais essa mudança drástica na paisagem e na memória urbana de Curitiba.
O prédio segue a arquitetura padrão dos sanatórios brasileiros da primeira metade do século passado. Não é tombado pelo Estado nem considerado unidade de interesse de preservação. Tampouco é oficialmente preservado o bosque que ladeia os 50 mil metros quadrados do terreno. A Secretaria Municipal de Meio Ambiente informa que logo que um novo projeto de ocupação for apresentado, técnicos farão um estudo do local, que abriga nascentes e pequena mata de pinheiros-do-paraná. Nos muros que tomam quase todo o quarteirão, moradores têm expressado seu medo de que junto com o edifício se perca também a mata que faz do Bom Retiro, "aquele bairro do hospital", um dos poucos com um arvoredo de quarteirão.
Nos bastidores da instituição, tanto quanto perguntar sobre o sumiço do "Bom Retiro" é provocar lágrimas, sempre muito discretas, bem à moda dos espíritas, criadores e mantenedores da obra. A Federação Espírita do Paraná (FEP) vendeu o hospital para a incorporadora InvesPark, não sem antes enfrentar um telecatch entre os membros dos 323 centros espíritas que formam a FEP. O argumento mais usado é que o local foi erguido graças à doação do mítico empresário Lins de Vasconcellos (1891-1952), inclusive sepultado no jardim da instituição, segundo seu desejo.
O bate-boca chegou às redes sociais, mas pesa sobretudo o argumento de que as instalações do Bom Retiro não satisfazem mais às exigências do atendimento psiquiátrico. Há escadas em demasia, paredes grossas demais e problemas estruturais de tal monta que fazem da bela paisagem também uma grande tormenta.
O mesmo vale para os pacientes que ocupam os 145 leitos disponíveis [foram, um dia, 260]. Por mais que os tratamentos tenham se modificado, o que os pacientes veem em volta remete aos capítulos mais cinzentos do serviço manicomial. Eis o paradoxo. Para o sistema de saúde, o prédio do Bom Retiro deve ser aposentado. Para a história, aquela arquitetuta espartana é um verdadeiro dicionário dos lugares que, uma vez, receberam o nome de "hospício".
É o que há. Pavilhões, já desativados, são dos tempos em que havia celas à moda monástica , janelas pequenas e altas, para evitar fugas e suicídios, frestas nas portas para passar medicamentos e pálidos filetes de luz nos corredores. Impossível não se imaginar ali e não se entristecer. Onde seria a mesa de eletrochoque? "Está tudo impregnado de sofrimento", comenta Eleonor Cecília Batista, 59, coordenadora dos 160 profissionais de saúde que atuam ali.
A chorar, Eleonor prefere lembrar que o Bom Retiro assistiu à maioria dos embates terapêuticos do século. Foi protagonista. Enfrentou sobressaltos e críticas, como as ligadas à publicação do livro O canto dos malditos, de Austregésilo Carrano. "Respondemos a todos os ataques trabalhando e criando", afirma sobre a que é uma das mais inglórias áreas da saúde.
Nos últimos dois anos, por exemplo, o Bom Retiro aboliu os muros internos que separavam pacientes homens e mulheres. Fez do refeitório um território livre. Ainda mantém o crachá marcando, de 1 a 5, em que nível o paciente está, mas há mais visitas de parentes e amigos. Uma cantina. Telefones públicos pequenas estratégias para diminuir o sofrimento mental. É preciso. No pátio, um canta sertanejo universitário, outro reza "Ave Maria", alguém grita: "Quer polenta?". Eis a trilha sonora.
Temia-se que com menos barreiras entre os internos o Bom Retiro iria se transformar numa tormenta a cada cinco minutos. Que nada. "Nunca mais precisamos chamar socorro. Estávamos certos. Quanto menos confinamento, mais harmonia. Foi uma revolução", festeja a enfermeira Elizete Pierri, 50, sobre o local um dia erguido para proteger os esquizofrênicos da sociedade, e vice-versa, erguendo-lhes uma fortaleza, para que ali se retirassem. "É passado", dizem, desviando da mudança que se acumula pelos cantos.
Vida e Cidadania | 2:46
Em um mês, centro de saúde que dá nome ao bairro do Bom Retiro vai ser demolido, apagando da paisagem curitibana prédio cuja arquitetura ajuda a entender a psiquiatria no Brasil do século 20.
Imagens atuais e antigas do Hospital Bom Retiro