Rapidamente, a notícia do adolescente que foi acorrentado nu a um poste por um grupo de "justiceiros" na zona Sul do Rio de Janeiro se propagou pela internet. Junto com os compartilhamentos, seguiu-se uma enxurrada de posicionamentos e comentários, que favoráveis ou contrários ao "castigo" imposto ao jovem chamavam a atenção pelo teor extremista. Anteontem, o cinegrafista Santiago Andrade morreu, dias depois de ter sido atingido por um rojão durante uma manifestação, também no Rio. Emblemáticos, os episódios refletem o momento da sociedade brasileira. Afinal, estaríamos caminhando para uma era de acirramento da intolerância e de posições extremas?
Para pesquisadores ouvidos pela Gazeta do Povo, ao menos no campo do discurso, a resposta é "sim". O principal ponto é que o radicalismo tanto o "de direita" quanto o "de esquerda" vem catalisado pela internet, principalmente pelas mídias sociais. Se por um lado o meio digital democratizou a comunicação e deu pluralidade às discussões, por outro revelou matizes de intolerância, até então ocultos ou dormentes na sociedade.
"A internet acabou com o monopólio da comunicação. O fim deste funil fortaleceu a extrema direita, que estava de fora do debate, e uma ala da extrema esquerda que, até então, estava apagada. Temos uma polarização, com tendências de as pessoas se identificarem e se agruparem nestes polos", avalia Joel Pinheiro, editor da revista Dicta & Contradicta e mestrando em filosofia.
A professora Luzia Deliberador, da pós-graduação em Comunicação Popular e Comunitária da Universidade Estadual de Londrina (UEL), aponta que este extremismo com pitadas de intolerância ganha respaldo no anonimato proporcionado pela internet. Ela exemplifica, mencionando o campo destinado a comentários de notícias em sites, infestados de observações carregadas de fanatismos.
"Esse radicalismo impressiona e assusta. Por um lado, temos uma facilidade de comunicação, mas parece que esta geração não está preparada para isso", disse. "Todos esses preconceitos jogados na internet revelam, infelizmente, uma sociedade conservadora e individualista, incapaz de pensar coletivamente", completa.
Para o professor de Sociologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) César Bueno de Lima, o extremismo revela um "grau de despolitização" e uma "pobreza intelectual" de quem o exerce. Esse fanatismo ganha combustível no descrédito pelo qual passam as instituições.
"Há uma crise de legitimidade. A pessoa não legitima [as instituições], mas não sabe o que quer no lugar. É uma atitude criticista: critica-se por criticar", ressalta "É um caminho perigoso, porque esses movimentos podem abrir caminho para uma liderança populista e antidemocrática", alerta.
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OpiniãoO rojão que matou Santiago ainda não acabou de explodir
Diego Escosteguy, Diretor da sucursal de Brasília da revista "Época"
A trágica morte do cinegrafista Santiago Andrade não foi uma mera fatalidade. O rojão que o matou fora aceso há meses. Coube aos dois mascarados apenas acabar o serviço. Quando o rojão finalmente explodiu, é possível que ele não estivesse apontado intencionalmente a Santiago. Mas isso não interessa. Não interessa porque, numa República, não há vidas mais importantes do que outras. A vida de Santiago era tão preciosa quanto a vida de qualquer cidadão. Qualquer um que pudesse estar no caminho do rojão naquela tarde de quinta-feira na Praça Duque de Caxias.
Num país em que se reduz todo ato de barbárie a uma fatalidade, seja matar um jornalista ou trancar um adolescente pelo pescoço a um poste, tudo é permitido. E, num país de fatalidades, ninguém é responsável por nada. A morte de Santiago não poderia ser exceção.
Uma fatalidade? Diga isso a Arlita Andrade, viúva de Santiago, e aos seus quatro filhos. A família de Arlita foi destruída pelos dois mascarados que, como acontece numa democracia, terão direito à ampla defesa e serão julgados pelo que fizeram. Mas a família de Arlita não está destruída apenas pelo que fizeram ambos os suspeitos. Os atos dos dois não surgiram no éter. Sobrevieram num momento de ascensão, no Brasil, de um discurso de intolerância, de ódio mesmo, em relação às principais instituições que dão sentido ao país.
É o discurso que, há meses, acendeu o rojão contra a democracia brasileira. Um discurso que define como vilões da nação a imprensa, os políticos e as demais instituições do Brasil. Um discurso que aparece nos gritos dos black blocs, mas que nasce e se propaga em blogs e sites governistas, financiados com dinheiro público com a missão de difamar a imprensa profissional. Os responsáveis por esses veículos, a pretexto de defender o pluralismo político, dedicam-se sub-repticiamente e usando máscaras tão negras quanto as dos jovens que explodem rojões nas ruas a achincalhar jornalistas, procuradores, políticos.
As ideias dos mascarados digitais tomam forma nas ações dos mascarados da rua. Não à toa, 114 jornalistas foram feridos desde o começo dos protestos, em junho passado. Acossados por black blocs, mas também pela polícia, repórteres têm de aderir ao anonimato para poder trabalhar. Mas as vítimas não são apenas jornalistas como Santiago. O rojão que o matou ainda não acabou de explodir. Está à espera de mais fatalidades.
Num país de fatalidades, ninguém é responsável por nada. A morte de Santiago não poderia ser exceção.