Vítor*, de 14 anos, foi jurado de morte pelo narcotráfico. Está vivo porque foi incluso no programa| Foto: Ivonaldo Alexandre/ Gazeta do Povo

Perfil

Maioria das vítimas são homens negros sem escolaridade

Há uma clara distinção de gênero, de raça e de classe social entre os jovens ameaçados de morte incluídos no programa de proteção do governo federal distribuído em 11 estados. Seis de cada 10 jovens têm entre 15 e 17 anos; 76% são do sexo masculino; 75% são da raça negra e 95% não chegaram a concluir o ensino fundamental.

O envolvimento com o tráfico de drogas responde por 60% das ameaças. Seis de cada 10 ameaçados moram nas capitais, mesmo porcentual dos que têm renda familiar de um salário mínimo. Dentre esses jovens, 75% têm a mãe como principal referência familiar.

Para 70% desses jovens, a porta de entrada no programa de proteção federal é o Conselho Tutelar ou o Poder Judiciário. A modalidade familiar responde por 42% dos casos de proteção, e 34% na modalidade institucional.

Em metade dos casos registrados, o tempo de permanência no programa é de seis meses. Também na metade dos casos, o desligamento do programa ocorre quando há sucesso na inserção social e acaba a ameaça.

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Causas

Envolvimento com o trafico de drogas lidera ranking de ameaças

O envolvimento com o tráfico de drogas é a principal causa para inclusão no Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte no Paraná (PPCAM). "Seja porque é usuário que não consegue pagar, seja por ser aliciado e os pais querem tirá-lo da situação. É o paradigma do ‘entrou, não pode sair mais’", diz Carmen. Mas existem ainda as ameaças de familiares, e outras decorrentes do abuso e da exploração sexual, da intolerância da comunidade com algum tipo de crime, e também provenientes de rixas entre gangues.

No caso de envolvimento do adolescente com drogas, o programa busca facilitar o tratamento e a reabilitação. "No momento da avaliação, buscamos permitir que o adolescente seja capaz de tomar a decisão. Se está muito comprometido com a drogadição, procuramos fazer com que a rede que acionou [o PPCAM] o trate dentro do equipamento para desintoxicação. Passada a desintoxicação, ele tem capacidade de avaliar o que está vivendo e é incluído", diz Carmen.

Os caminhos de Vítor* e Luana* se cruzaram dia 1º de fevereiro de 2011 no interior do Paraná. Noite, ele mal pode vê-la sob a nesga de luz na entrada no portão da casa de passagem. Nunca ficariam frente a frente, embora dali em diante o destino de ambos tivesse curso idêntico, traçado por uma desventura que os unia desde há muito. Até a drástica ruptura. Talvez menos por escolha própria e mais pela tirania das contingências – quem vai saber? –, um deles não escaparia ao anunciado justiçamento. E cumpriu-se a sentença.

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A presença naquele abrigo significava o ingresso de Luana no Programa de Proteção de Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte, o PPCAAM. No dia seguinte, Vítor abordou a coordenadora, Carmen Lúcia Pereira da Silva. A história soou tão urgente quanto à de Luana. Ambos 14 anos, ambos jurados de morte pelo narcotráfico, foram incluídos no programa. Mas isso exigia a renúncia à vida pregressa e umas quantas privações, um fardo quando se é adolescente. Ele disse sim. Ela disse não. Ele está vivo. Ela não.

Luana poderia ter tido melhor sorte, houvesse aceitado ajuda. O PPCAAM do Paraná – similar aos de outros 10 estados – nunca perdeu dessa maneira um de seus protegidos. Desde sua criação, em maio de 2010, atendeu 196 casos de ameaças de mortes a crianças e adolescentes no estado, 124 deles encaminhados pelo Ministério Público, 66 pelo Judiciário e seis enviados por outros estados. Desses, 59 casos foram incluídos no programa pela gravidade da ameaça, somando 136 pessoas protegidas, 88 delas crianças e adolescentes e 48 familiares adultos.

Esses jovens tiveram de sair de casa para permanecer vivos. O perfil dos ameaçadores varia de traficantes e parentes a autoridades públicas. A inclusão no programa pressupõe ameaça de morte por homicídio, e não apenas viver em situação de risco. O programa em todo o país é de proteção de adolescentes até 18 anos ou egressos de medidas socioeducativas até 21 anos. A maior parte dos recursos vem do governo federal, com uma contrapartida estadual. No Paraná, está vinculado à Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos.

História conhecida

Vítor e Luana tiveram um ingresso padrão no tráfico, fazendo as vezes de aviãozinho aos 9 anos de idade. Ele usou maconha e vendeu crack até se dar conta que não teria futuro. Ela, ao contrário, se deslumbrou com um mundo de possibilidades que julgava não alcançar de outra forma. Ao saber que seria morto, acusado de furtar os traficantes, Vítor se refugiou na casa de parentes numa cidade vizinha e buscou ajuda no Conselho Tutelar. Luana, mesmo ameaçada, só foi a um abrigo por injunção da família. Estavam claras as diferenças.

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Vítor foi levado a um abrigo na região de Curitiba. Após dois anos e sete meses sob proteção, fazendo cursos os mais variados, retornou no último dia 6 à cidade natal para viver com o pai, que enfim o aceitou como filho. Luana nem chegou ao primeiro estágio. Entre uma conversa e outra, dizia a Carmen não querer proteção porque um dia seria a primeira-dama do tráfico. Evadiu-se do programa em dois meses. A família a internou numa clínica de recuperação. Fugiu. Dias depois, recém chegada aos 15 anos, recebeu sete tiros na cabeça.

A coordenação nacional do programa, ligado à Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, diz não poder informar os números por estados "por motivo de segurança". Os estados onde ele existe são: Paraná, Paraíba, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Alagoas, Espírito Santo, Pernambuco, Pará, São Paulo, Rio Grande do Sul e Distrito Federal. Há outros três em implantação.

Grau da ameaça define inclusão do adolescente

O que define a inclusão do jovem no programa de proteção é o grau da ameaça e o potencial do ameaçador. Às vezes, basta mudar de bairro, ou encaminhar o jovem para uma comunidade terapêutica. A inclusão no programa é a última alternativa, pois as regras muitas vezes são drásticas, e significam cortar elos sociais. E muitas vezes os pais não querem acompanhar o filho. O programa é para casos em que não há outra alternativa, quando o risco é tão grande que é preciso sair da escola, deixar os amigos, romper os vínculos sociais.

A proteção dura de seis meses a dois anos. O objetivo é retirar o adolescente e a família da área de influência de quem o ameaça. O programa supre as necessidades imediatas, como escola, alimentação, vestuário, moradia, saúde. "Temos caráter de reinserção, serviços estão disponíveis para todo o cidadão. Não fazemos política assistencialista", diz a coordenadora do PPCAAM no Paraná, Carmen Lúcia Pereira da Silva. Por isso, à medida que a família vai se reinserindo na nova comunidade, perde gradativamente essas contribuições até que conquiste autonomia.

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O jovem não pode repetir as atitudes que o coloquem outra vez sob ameaça, não pode fazer contato com o local de ameaça e tem de se distanciar do ameaçador, que às vezes é a própria família. Há casos em que o jovem perdeu o vínculo com os pais e vai para abrigos ou a famílias solidárias – elas são poucas, mas existem para esses casos, normalmente nas próprias comunidades. Essa é uma modalidade de muito pouco alcance na região Sul do país, e mais comum no Norte e no Nordeste. Por aqui, normalmente o jovem vai para uma instituição.

A convivência familiar também é uma medida do programa, já que o adolescente é uma pessoa em formação e muitas vezes já tem um histórico de violência e vulnerabilidade. Isso tudo cria mundo de dificuldades que vai levá-lo para situação de ameaça de morte. Contudo, nem sempre ele tem esse entendimento, e acha que pode resolver o problema por conta própria. Por isso, a voluntariedade é um pressuposto para entrar no programa. "Não conseguiríamos proteger alguém que não quer ser protegido", diz Carmen.

A criança e o adolescente nem sempre têm maturidade emocional para entender o teor da ameaça, nem sempre está disposto a ser protegido. Às vezes ele até quer, mas depois quando volta a se sentir seguro, quando começa a se distanciar a situação de risco, ele quer voltar. "Dos que nós tivemos notícia e contato, não tivemos registro de morte por não entrarem no programa. Quando ele não quer, é papel construir outra alternativa. Se não há alternativa imediata e ele não quer, tentamos encontrar um outro formato de proteção", explica Carmen.

* Nomes fictícios.