A felicidade existe? Existe! Uma de suas fiéis expressões responde pelo nome de Clotilde Costa da Silva, tem 78 anos de idade e se encontra no número 753 da Rua Três Marias. O endereço, talvez não por acaso, fica na região de Santa Felicidade, em Curitiba. Clotilde é dessas pessoas que não só são felizes como ainda fazem outras felizes, contagiando-as com a gargalhada espontânea que entrecorta a conversa a todo instante. Momentos tristes foram três: a perda de dois filhos ainda bebês e a morte da mãe, aos 98 anos. Mas a dor não ofuscou sua felicidade, ainda que lhe pese o preconceito da cor.
Aos céticos que possam vê-la como hipérbole jornalística, quem sabe por considerar impossível ser feliz a maior parte do tempo, o marido atesta tamanho estado de graça. "É sempre assim", diz José. A declaração está longe de ser uma reprimenda. É, antes de tudo, um agradecimento por tornar-lhe os dias mais fáceis. E não foi nada fácil quando, em 2 de agosto de 1956, recém-casados, trocaram a lida na roça em Itajaí (SC) pela vida em Curitiba. José tinha vergonha de contar ao pai sua nova condição na cidade grande. Mas no fim não se saíram tão mal. Criaram dois filhos e seguem felizes.
Clotilde tem pouca leitura, mas muita sabedoria. Gosta uma barbaridade de conversar, e assunto não falta. É a sensação na cozinha da Capela Nossa Senhora das Graças da Vila Real, que ela e José ajudaram a fundar em 1975. Dizem que o risoto não é o mesmo quando não tem ali a mão dela. Não é para menos. Cozinheira a vida toda, por 30 anos pôs à mesa na casa da tradicional família Leão. Aposentada desde setembro, continua a emprestar seus dotes nas festas da igreja. Quando não está ao fogão, é convidada a alegrar a cozinha. Seu dom: espalhar a felicidade. Seus recursos: o bom-humor e a gargalhada.
Ao fim da missa, leva mais de hora para vencer as duas quadras até sua casa. Para de passo em passo para atender aos que chegam. "De longe dá para ouvir as gargalhadas", diz José. Volta e meia, a pergunta: "Por que você é assim?" A resposta flui natural: "Porque eu me gosto". Negra e pobre, ela poderia trilhar o caminho fácil da lamentação. De que adiantaria? Gostar de si é o primeiro passo para a felicidade, mas não o único. Clotilde se sente uma pessoa feliz também por gostar dos outros. Na festa de 50 anos de casamento, pediu alimentos em vez de presentes. Doou metade para o Hospital Erasto Gaertner e metade para a igreja.
Mas o que é essa tal felicidade? Como encontrá-la se nem sabemos o que exatamente ela é? Para facilitar as coisas, um expoente da Psicologia Positiva, o norte-americano Ed Diener, criou uma definição que pode ser traduzida num esquema bastante didático. A definição: "Felicidade é a predominância dos afetos positivos sobre os afetos negativos ao longo do tempo". Os afetos positivos: altivez, alegria, prazer, tranquilidade, afeição, orgulho, êxtase, solidariedade. Os afetos negativos: culpa, vergonha, tristeza, ansiedade, irritação, temor, estresse, depressão, inveja. O esquema: fazer os do primeiro grupo se sobreporem aos do segundo pelo maior tempo possível.
Pesquisador da consciência crítica, o psicólogo Laênio Loche observa que as pessoas tendem a falar sobre os fatores que promovem a felicidade como se eles fossem a própria. "A felicidade não está relacionada a uma carga emocional", esclarece. Um torcedor pode ser infeliz mesmo vibrando com o título do campeonato. "Não basta ter picos de alegria, é preciso ter uma constância dos afetos positivos", explica Loche. Mesmo uma jovem que chore três dias a perda do namorado pode ser considerada feliz se no decurso de um tempo maior predominarem os afetos positivos.
Os três pilares
Para melhor compreender a felicidade, outro psicólogo, da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, dividiu-a em três: prazer, engajamento e significado. O prazer, mais fácil de explicar, se manifesta quando fazemos ou sentimos algo que nos faz bem. O engajamento pode ser medido pelo quanto nos envolvemos com nossa existência, como quando participamos de forma ativa da vida e nos dedicamos de maneira intensa ao que fazemos. O significado, por sua vez, está relacionado à sensação de que nossa vida faz parte de algo maior.
Ao fracioná-la, Martin Seligman concluiu que costumamos concentrar nossa busca pela felicidade num só dos três pilares, negligenciando os demais. A opção mais recorrente também cômoda geralmente é o prazer. Não por acaso, é dessa faceta da felicidade que mais recebemos estímulos externos, da mídia em particular. Para ser feliz você precisa dirigir este carro, vestir esta marca, usar este xampu, ser igual a estas pessoas. Ok, o prazer é efêmero, e não é bom se acomodar só nesse terço da felicidade, mas também não é recomendável buscá-la em apenas um dos outros dois.
No caso do engajamento, há quem se entregue por completo a um romance, ao trabalho, à família, à caridade. E pode sofrer por ignorar os outros dois braços da felicidade, sobretudo o prazer. Já o significado se nos apresenta em geral por meio da religião. Crer que fazemos parte de uma ordem maior vira alento para mitigar as mazelas diárias. Dá certo conforto acreditar que, no fim de tudo, um ente supremo reconhecerá nosso esforço e corrigirá as injustiças. Tudo um dia vai se resolver. Não por acaso, pesquisas indicam que pessoas religiosas tendem a ser mais felizes.
Como se vê, sentar num banco de uma ou de duas pernas dá certo por um instante, mas a queda virá. Felicidade de uma perna só é efêmera, de duas é instável, de três é ideal. Pela fórmula de Seligman, ser feliz requer prazer em boa medida, sem precisar se anular por uma boa causa nem se enfurnar numa igreja. Alternativa eficaz é praticar o bem, como colaborar na festa da igreja, igual Clotilde, visitar um asilo, fazer serviço voluntário, ajudar entidades de caridade. Seligman mediu a bondade em laboratório e assegura que ela melhora nossos níveis de felicidade.
O significado que nos fará feliz pode estar na realização ou participação de algo que sobreviva a nós. Não se trata de apenas criar filhos, mas de deixar um legado, seja uma obra ou um exemplo de vida. Também ajuda atribuir importância a si mesmo, ver-se inserido numa grande causa, em favor da natureza, das causas sociais, da educação, da ciência, da liberdade. Eis a síntese do ensinamento de Clotilde, autoridade no assunto. A felicidade, tão natural para ela, tem motivado elaboradas discussões filosóficas desde os primórdios do pensamento humano.
Os primeiros pensadores já se debatiam em explicações. O filósofo André Comte-Sponville trata disso no livro A felicidade, Desesperadamente. Ao contrário do que pode sugerir o título, ele propõe uma felicidade sem a angústia da busca, simplesmente uma felicidade que chega sem se esperar. Alerta para o risco de depositarmos no futuro a esperança de que um dia algo aconteça para nos fazer felizes. Esperar demais é danoso e para ele a felicidade é o estado de espírito de quem não espera nada e desfruta o momento presente.
Ninguém é obrigado a ser sempre feliz. Nos dias atuais, de ostentação, tristeza está associada ao fracasso e felicidade virou obrigação. No entanto, elas são combustível uma da outra. O sofrimento, por seu caráter inevitável, nos ajuda a buscar algo melhor. Fôssemos sempre felizes, não haveria motivo para mudar nada e estaríamos fadados à estagnação. Portanto, a vontade de mudar o estado de coisas e o desejo de termos o que nos falta é que nos empurra para frente. Ansiedade, portanto, não é de todo mal. A diferença entre uma pessoa e outra está no que cada uma faz com a sua.
O efeito dos antidepressivos, paliativo muito recorrente, dura só até o próximo comprimido. Para essas ocasiões há caminhos melhores. Para Sponville e antes dele Nietzsche, Spinosa e Montaigne , a filosofia nos ajuda a pensar sobre nós mesmos e a viver nossos pensamentos. Quando desenvolvemos sabedoria tornamo-nos capazes de discernir sobre a verdade das coisas que nos cercam e, por consequência, o que nos faz felizes. Já a psicanálise ajuda a resgatar dos labirintos do inconsciente a explicação que está em nós.
A reflexão que uma e outra possibilita ajuda a identificar as causas das aflições e nos leva ao autoconhecimento, que por sua vez nos leva a compreender os porquês das coisas. É um jogo de retroalimentação dentro de nós mesmos. Nem sempre é preciso deitar-se no divã ou meter-se entre filósofos para pensar sobre nossas próprias coisas, mas os profissionais dessas áreas nos ajudam a interpretar melhor aquilo que nos diz respeito.
A auto-análise desenvolve a coragem da autocrítica e o compromisso de melhorar a própria vida e a dos outros. Na opinião de Sponville, quem busca a verdade dentro de si mesmo, e não naquilo que os outros impõem que faça ou deseja, está mais perto de se libertar das ilusões e esperanças tolas. Quais sejam: a ilusão de que se é mais feliz quanto mais se consome e se acumula bens. Clotilde aprendeu isso na vida, e depois de uma hora e tanto de conversa fluida, sem Nitsche nem Sponville, remata com uma recomendação: "Aí você escolhe o que tá melhorzinho e o resto tira fora".