O paraguaio Rafael Portillo, 24 anos, cresceu em um mundo de conflitos. Filho de campesinos, foi obrigado a migrar para a fronteira do país porque o pai era perseguido pela ditadura. Na juventude, acompanhou as disputas por terra. Hoje, cursa Ciência Política e tenta entender a própria história. Portillo faz parte da primeira turma de alunos da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), em Foz do Iguaçu. Ele retrata bem o perfil do estudante da nova universidade: latino-americano vindo de colégio público. Na contramão da maioria das instituições públicas de ensino superior do Brasil, na Unila 100% dos universitários brasileiros fizeram o ensino médio em escolas públicas.
O índice é visto como uma conquista na universidade porque, de certa forma, conforme professores, corrige uma distorção existente no ensino brasileiro. Hoje, segundo o reitor da Unila, Helgio Trindade, 89% dos alunos brasileiros de ensino médio estão matriculados na rede pública, enquanto apenas 11% nas privadas. No entanto, o vestibular tradicional beneficia egressos de escolas particulares.
Para entrar na Unila, uma universidade bilíngue onde as aulas são ministradas em português e espanhol, os alunos brasileiros precisam prestar o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Os estrangeiros (paraguaios, argentinos e uruguaios) são selecionados de acordo com critérios estabelecidos pelo próprio país. No caso de brasileiros, candidatos que cursaram integralmente todo o ensino médio em escola pública, com histórico de aprovação têm bônus de 30% na nota e mais chances de ser selecionado pelo Enem em relação aos que estudaram apenas escolas particulares.
"Priorizamos estudantes que vêm de classes menos favorecidas, mas não deixam de ter um desempenho acadêmico razoável", diz o pró-reitor de graduação Orlando Pilati. E o resultado é satisfatório. Segundo a universidade, o desempenho dos alunos no Enem foi acima da média (6 ou mais).
Bom exemplo
A Unila não é a única universidade brasileira a adotar uma política voltada para beneficiar alunos de colégios públicos. Em atividade desde o início deste ano, a Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), com sede em Chapecó (SC) e outros quatro câmpus, também usa critério semelhante. Hoje, 91% dos alunos da UFFS são oriundos de escola pública, dos quais 79% não fizeram pré-vestibular. Pelo menos 56% deles vieram de famílias que ganham até três salários mínimos. A realidade é parecida com a da Unila, onde muitos estudantes não poderiam cursar o ensino superior, mesmo em faculdades públicas, caso não recebessem alguns dos benefícios da universidade: moradia, alimentação e transporte.
Dos 207 alunos da Unila, 140 moram em um alojamento bancado pela própria universidade, onde não se paga nem sequer para comer. O local (um antigo hotel com 97 chalés, com restaurante, área de convivência, espaço para projeção de filmes, debates e piscina) acomodou perfeitamente o grupo. A universidade comprou o espaço e agora procura novos imóveis em Foz para acomodar a segunda turma de universitários que chegará em 2011. Entre as regras do condomínio universitário, uma chama atenção: um brasileiro precisa dividir o quarto com um estrangeiro. É isso que fazem o brasileiro Alexandre Andreatta, 19 anos, e o paraguaio filho de campesinos Rafael Portillo.
No porta do quarto, uma bandeira paraguaia e uma brasileira marcam a convivência dos dois povos. E as primeiras impressões já surgiram. "Nós não conhecemos nada da cultura do outros países, temos uma visão limitada", conta o brasileiro. Natural de Pato Branco, Andreatta largou o curso de Arquitetura da Universidade Federal Tecnológica do Paraná (UFTP), em Curitiba, para estudar em Foz do Iguaçu o curso de Relações Internacionais, com o qual sempre sonhou. E parece estar gostando.
Com a sabedoria de quem já viveu no campo, mas está conectado ao mundo urbano, Portillo (cuja família vive em Presidente Franco, município vizinho a Ciudad del Este) diz que para ele a integração com demais colegas latino-americanos era um sonho. "No Paraguai, os trabalhadores do campo têm conflitos com os brasiguaios (imigrantes brasileiros). Mas para mim o conflito não é entre paraguaios e brasileiros. Somos contra o agronegócio (grande produtor) e a monocultura da soja", relata. Portillo, que tem no quarto um pôster de Che Guevara, soube do projeto da Unila em um congresso da União Nacional dos Estudantes.
Além das jornadas de estudos e debates, os alunos da Unila também já fazem planos para as férias. O roteiro não podia ser diferente: conhecer a América Latina. "A integração tem múltiplas repercussões. Já estamos planejando ir com os brasileiros para o Uruguai e Argentina", diz o uruguaio Matias Varera, 25 anos, aluno do curso de Ciência Política.