Participantes da Vila da Cidadania: fanfarra e músicas próprias| Foto: Marcelo Andrade/ Gazeta do Povo

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Pro dentro da Vila

Um pouco da rotina do projeto educacional que cria novas perspectivas para o trabalho nos contraturnos escolares

Oficinas

Os idealizadores da Vila da Cidadania – os professores Elival do Couto e Lúcio Ferracin – entendem que oficinas para alunos com defasagem devem ser curtas. Na vila, muitas têm apenas um dia de duração. "Com começo, meio e fim", diz Lúcio. A maioria das ofertas é de oito encontros, com três horas/aula cada. A condução deve ser lúdica, criativa, trazendo o conhecimento científico ao rés-do-chão. Daí o acento na educação financeira, de modo a levar estudantes vindos de ambientes de economia informal a conhecer as vantagens da organização. "A vila funciona como uma incubadora", reforça Ferracin.

Consumo

"Simulamos um banco, com fila. É a primeira regra", conta Lúcio Ferracin, sobre a rotina na Vila da Cidadania. E explica: o projeto se dispõe a trabalhar o respeito, mas também educar para o consumo, evitando os malefícios do consumismo. Para a população de baixa renda essa é uma questão cara: há quem se perca diante dos apelos do mercado. Num dos mais de 20 prédios da vilinha foi instalado um shopping, no qual se pode comprar material para as oficinas – pago com a moeda local, o "Real da Cidadania". O projeto inclui uma feira do empreendedor. Há nota fiscal, cálculo de carga tributária e uma equipe gestora para acompanhar os investimentos.

A rádio

O administrador de empresas Jhones Garcia, 32 anos, trabalhava como executivo da Rede Renner quando entendeu que alguma coisa estava fora de ordem. Queria fazer diferença na vida de alguém. Tinha um "plano b", sua segunda faculdade, Letras. Atirou-se à sala de aula. Um dia conheceu o projeto Vila da Cidadania e se "alistou".

Hoje, faz parte da paisagem da cidade-mirim, tantas atividades desenvolve ali. Da oficina de cordel à Rádio Comunitária, uma das coqueluches dos adolescentes. O alcance é local. "Sabe rádio de quermesse? Aquela com a caixa de som para fora? Pois é assim. Eles precisam ter a experiência de ouvir a própria voz", discorre o irrequieto Jhones, durante a produção de um programa. Perguntado se está satisfeito com a escolha, mal espera o fim da pergunta. "Quando entrei na escola, foi de cabeça. Sinto que estou marcando a vida deles."

A banda

"Aqui não tem cover", avisa o músico Marcos Rodrigues, 43 anos, músico profissional, oito meses de Vila da Cidadania. Ele quer deixar claro que a fanfarra, ou as bandas que forma no local, não se limitam a reproduzir o que os outros já fizeram. Criam. Inclusive instrumentos, com latas e demais descartáveis. E compõem. Têm de ser como Marcos, um sujeito "bem Bombril", como gosta de dizer. "Eles são bastante empenhados e hiperativos", completa. Uma das provocações do professor foi pedir aos alunos que musicassem as poesias de Paulo Leminski. Entusiasma-se: "É uma loucura. Para mim é uma realização saber que passo conhecimento para alguém."

Comunidade

Além de dobrar sua capacidade de atendimento, uma das ambições dos diretores da Vila da Cidadania é se abrir cada vez mais à comunidade de Piraquara e de Pinhais, assim como receber adolescentes das dez Unidades Paraná Seguro, a UPS. Hoje, três unidades são atendidas. Alunos do programa de tecnologia do governo, o Pronatec, usam a estrutura da cidade-mirim, à noite.

A novidade são as aulas de português para haitianos, também noturnas, lecionadas pelo professor de Filosofia José Marques e pelo professor de Português Jhones Garcia, ambos voluntários nessa atividade. A estimativa é que haja 700 haitianos na região, com concentração no Jardim Weissópolis, em Pinhais, ao lado da Vila da Cidadania. Cerca de 60 alunos frequentam as aulas. Duram uma hora e são precedidas de um jantar.

Oficineiros

Para esta reportagem, além da direção da Vila da Cidadania e dos professores Jhones Garcia e Marcos Rodrigues, a reportagem conversou com os seguintes professores e oficineiros: Breda Miura, formada em Artes Cênicas; Leônidas Jorge dos Santos, formado em Teologia e Tecnologia da Informação; Ândrela Siroti, formada em Educação Física; Tatiana Bonin, engenheira agrônoma; Ary Ricardo, engenheiro agrônomo e José Marques, formado em Filosofia.

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Histórias de quem ensina

Gestores da Vila da Cidadania trabalharam em unidades de ressocialização e no reerguimento de colégio avariado do Alto Boqueirão

Como se diz no senso comum, a vida dos professores Elival do Couto Souza e Lúcio Ferracin daria um livro. Os dois vêm de experiências pedagógicas radicais, patrimônio pessoal que se reflete no que estão desenvolvendo faz um ano na Vila da Cidadania, em Piraquara.

Ambos, por exemplo, trabalharam uns bons anos em unidades ressocialização, ao lado de adolescentes em conflito com a lei. Lúcio no Educandário São Francisco, também em Piraquara. Eli, como é chamado, no Centro de Triagem, em Curitiba. Qualquer um desses espaços exigem nervos de aço. Mas nada que os tenha impedido de fugir ao clima policialesco desses ambientes.

Lúcio, biólogo por formação, fazia oficina de mudas de árvore com alguns meninos que já tinham pegado em armas. Não tinha medo de dar instrumentos, como espátulas e pás, nas mãos de seus oficineiros. Foi com a confiança que chegou a plantar 500 mil mudar num ano. Bem lembra da união do grupo com o qual trabalhava, durante a rebelião de 2009 na unidade. "Na hora, rezamos juntos pedindo paz".

Na mesma época, Elival produziu um livro de poesia de cordel com guris em vias de cumprir medidas socioeducativas em regime fechado. Havia quem julgasse um feito impossível. "Tínhamos muitas angústias pedagógicas", conta Eli. Por isso, Lúcio e ele se ofereceram para voltar às salas de aula. A Secretaria de Estado de Educação acudiu, mas não lhes ofereceu um mar de rosas. O novo posto de trabalho da dupla era o Colégio Estadual Mílton Carneiro, no Alto Boqueirão.

Foi em 2011. A situação no "Mílton" estava tão crítica que os professores, não raro, costumavam se esconder dos arruaceiros numa pequena sala. "Havia mais alunos circulando na laje do que dentro da sala de aula", contam. O prédio estava avariado. Os índices de evasão e reprovação batiam todos os rankings – para baixo. "Os alunos tinham vergonha de estudar ali. O colégio não tinha nenhum vidro. Polícia ia lá constantemente. Eram quatro alunos na sala de aula e 100 no telhado", lembra Eli.

Quando contam de que estratégias usaram para virar o jogo, há quem duvide: Eli e Lúcio chamaram os pais dos alunos e permitiram que participassem da vida da escola. O resto veio de forma natural. Em meio a uma cultura que culpabiliza a família e vê nela a fonte do desinteresse dos adolescentes, a experiência do "Mílton Carneiro" impressiona. Tanto que são chamados para contá-la, inclusive no exterior, a exemplo de um congresso na Colômbia.

Os números estão sempre na ponta da língua. A "Mílton Carneiro" tinha 56% de reprovação, 45% de distorção idade/série. Em dez meses a retenção foi reduzida para 9,5%. O Ideb de 2,2, a nota mais baixa da rede, saltou para 3,5. Na ponta da língua, também, Eli e Lúcio têm sempre uma piada: brigaram tanto pelo colégio que foram apelidados de "pitbulls da educação". Acham graça. E agradecem o título.

Jhones Garcia ensina português a haitianos na Vila da Cidadania
Um dos mais de 20 pequenos prédios da cidade-mirim, usados para oficinas
Adolescente trabalha com recicláveis em oficina da Vila da Cidadania
Professor Marcos Rodrigues ensaia fanfarra numa das ruas da Vila da Cidadania
Detalhe da fanfarra da Vila da Cidadania
Adolescentes preparam programa na Rádia Cidadania, uma das oficinas fixas do projeto
O músico Marcos Rodrigues estuda instrumento durante intervalo de aula na Vila da Cidadania
Professor Eli, tendo ao fundo a paisagem da Vila da Cidadania
Os professores Elival e Lúcio, à frente do projeto

As chamadas "cidades-mirins" dispensam apresentação. São o que o nome diz – ruas e praças, fórum e prefeitura, armazéns e farmácias, tudo distribuído em diminutos metros quadrados, erguidos desse modo para que crianças e adolescentes façam de conta que chegaram à vida adulta. Ali exercitam da civilidade no trânsito ao direito de voto. Aprendem a comprar na venda. Praticam a vida pública. Planejam o futuro.

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INFOGRÁFICO:Confira o mapa da Vila da Cidadania

VÍDEO: Conheça a Vila da Cidadania

SLIDESHOW: Veja imagens da Vila da Cidadania

Em Curitiba, as "cidades-mirins" fazem escola há nada menos do que meio século. Duas delas dormem de pijama no imaginário local – a "cidadela" do antigo Colégio Lins de Vasconcelos (hoje Opet), no Bom Retiro; e a vilinha do "Maternal Nice Braga" (hoje CMEI), na Santa Quitéria. Há uma terceira, em Piraquara, de propriedade da BS Colway Pneus, construída para ser um playground educacional para os filhos dos funcionários. Foi assim até ser cedida em comodato à Secretaria de Estado de Educação para abrigar um "reforço escolar". É quando começa essa história.

"Na briga"

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Em 2012, o biólogo e químico Lúcio Ferracin e o professor de Língua Portuguesa Elival do Couto Souza, o Eli, foram convidados a fazer uma visita técnica à "cidade em miniatura da BS Colway". É comum os dois serem chamados a dar pitacos em projetos novos. Têm autoridade para tanto: ambos são egressos das unidades de ressocialização – que atendem meninos e meninas em conflito com a lei – e autores de uma experiência transgressora no Colégio Estadual Milton Carneiro, no Alto Boqueirão.

Pois o que era para ser uma consultoria de rotina mexeu com os juízos da dupla. Eli e Lúcio viram naqueles 30 mil metros quadrados, com jardins e 20 e tantos prediozinhos que pareciam saídos da aldeia Smurf, um terreno perfeito para uma educação sem espartilhos. Tiveram de trabalhar pesado para fazer valer suas propostas. "Do jeito que o local funcionava, não colava", resumem. "Decidimos mudar. Na briga."

Tiveram poucos meses para ganhar a parada. Uma madureza. Reviraram teorias pedagógicas. Esbaldaram-se em cima de planilhas. Enfrentaram serões e algumas negociatas com as cúpulas do governo. Dizem que valeu cada peça reunião, cada conversa. Em um ano de instalação, a ser comemorado em agosto, a Vila da Cidadania – seu nome oficial – saltou do vago conceito de "reforço" para candidata a similar paranaense da famosa Escola da Ponte, em Portugal.

Quermesse

À primeira vista, a Vila da Cidadania não tem nada que faria Paulo Freire sair para dançar. Os 1.856 participantes – entre 11 e 17 anos – vêm de 25 escolas (três delas em áreas de Unidades Paraná Seguro, as UPS), frequentam o local fora dos horários de aula, de manhã e de tarde. Podem escolher dentre as oficinas oferecidas, desfrutam de recreio na bem cuidada paisagem da "cidadezinha". Depois são devolvidos a suas comunidades, em três ônibus de filme americano. Têm a seu dispor 12 professores. O lanche é ótimo.

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Seria um contraturno de luxo não fossem os participantes, em 100%, beneficiários do Bolsa Família e, quase na mesma proporção, às turras com o sistema de ensino. São maciçamente candidatos à evasão escolar, um risco que "despenca" a cada dia, graças a um capricho da direção: os gestores têm urticárias a dois tipos de práticas, oficinas desinteressantes e educadores desinteressados. O antídoto para que isso não aconteça é só um: "Saímos do quadradinho para ver como o aluno vive. Olho no olho. É isso", resume Eli.

Resumo da ópera, as oficinas têm a ver com os alunos e os alunos se acotovelam pelas oficinas. Compram o material ali mesmo, na "venda", com moeda própria, o "Real da Cidadania". O juro é de 1%. Há nota fiscal. Num dos cursos, aprendem a produzir materiais de higiene, como cremes e pastas de dente; noutro, integram a Rádio Cidad㠖 uma espécie de emissora de quermesse. Tem uma banda de música, um The Voice à sua maneira. E rodadas de soroban – santo remédio para quem experimenta as desventuras em série da matemática.

Como não são abertas mais de 15 vagas por turma, pode-se tentar uma colocação na horta ou mesmo na cozinha, ao lado dos funcionários, também conquistados para as fileiras do projeto. Quem pisa lá sente de imediato essa química. No mais, as ofertas, creiam, incluem oficinas tão distantes quanto golfe e capoeira – que gozam de preferência pau a pau. Se não houver nenhum grupo em que se alistar, fazer nada também vale: sempre tem um bicho-preguiça nas ruazinhas da vila. Fauna aplicada. Os distraídos também aprendem.

Com "sotaques" diferentes, professores fazem da Vila um grande laboratório

"Quando me perguntam se o que fazemos aqui é vanguarda, digo que sim", declara o professor Lúcio Ferracin, ao circular pela chácara de Piraquara onde funciona a Vila da Cidadania. A primeira impressão parece desmentir o dito. O local soa meio "careta". Mas, visto de dentro, o projeto nada tem de enfadonho.

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A "culpa" é dos 12 professores chamados para conduzir a gurizada nessas "empreitadas de prazer". É divertido perguntar de onde eles vêm. Há educadores de cepas tradicionais, mas também agrônomos, um músico, um ex-executivo, um viajante.

Com milhagens tão diferentes, o grupo cria uma caixa de ressonância. Qualquer atividade tende a ganhar eco. O que é feito, rápido se democratiza. Há disciplina, mas nada que faça os que ali estão – muitos próximos de um borderline escolar – perguntarem que horas mesmo acaba a aula.

Em tempo, a vila tem capacidade para atender 3,5 mil adolescentes, mas só dispõe de três ônibus para buscar os alunos nas escolas. Os gestores buscam parcerias para aumentar a frota.

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