Uma proposta em apreciação na Câmara dos Deputados pode resultar na liberação do plantio da maconha no país - e não apenas para fins medicinais. O texto de autoria do deputado Luciano Ducci (PSB-PR), na verdade, é o substitutivo de uma proposta bem mais branda apresentada há cinco anos. Inicialmente, o projeto em discussão propunha apenas o comércio de produtos à base de cannabis para a produção de medicamentos.
Mas a proposta de Ducci vai muito além: permite “cultivo, processamento, pesquisa, armazenagem, transporte, produção, industrialização, comercialização, importação e exportação”. O texto também contempla “produtos sem fins medicinais”. Se depender do exemplo do Uruguai, entretanto, o país não tem muito a ganhar com a flexibilização na legislação antidrogas.
Defensores da legalização costumam citar positivamente o caso do Uruguai, que liberou o comércio e a produção da maconha, inclusive para fins recreativos. Obviamente, o cenário difere, e muito, do Brasil: a população do Uruguai é metade da cidade do Rio de Janeiro. O que funciona no território uruguaio não necessariamente vai funcionar em um país muito mais complexo e menos homogêneo. E, mais importante: as estatísticas uruguaias são preocupantes.
A liberação do comércio da maconha foi sancionada no fim de 2013 no Uruguai; mas, devido às dificuldades burocráticas, o comércio só teve início em julho de 2017. De forma geral, a legalização tendeu a servir como um incentivo ao consumo. Ao mesmo tempo, por causa das regras burocráticas em excesso, a oferta da maconha “oficial” (vendida em farmácias, mediante um cadastro prévio) é reduzida. Isso reforça o mercado paralelo, que também atende pelo nome de narcotráfico. No ano em que o comércio da maconha teve início, os homicídios tiveram uma alta de 5,6% (puxados exatamente pelos meses pós-legalização) em relação a 2016. De 2017 para 2018, o salto foi de impressionantes 45,8%. Segundo o governo, metade desses assassinatos tem a ver com o tráfico de drogas.
Um levantamento do UNDOC, o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, concluiu que o consumo de drogas no Uruguai em 2017 estava num patamar muito superior ao de 2014, em todas as faixas etárias. O crescimento mais acentuado ocorreu na faixa dos jovens entre os 19 e os 24 anos, em que o consumo habitual passou de menos de 25% para mais de 35%.
Os resultados da liberação no Uruguai são fruto de uma mudança mais radical da que a que se propõe no Brasil - o projeto em debate na Câmara não libera o plantio para fins recreativos -, mas a legislação do país vizinho parece se assentar em pressupostos semelhantes aos defendidos por parlamentares como Ducci. Um deles: o de que o Estado será capaz de fiscalizar uma miríade de regras envolvendo o plantio e o transporte legal da maconha.
Em entrevista à Gazeta do Povo, o deputado Luciano Ducci afirmou que o Estado brasileiro tem condições de fiscalizar o que impõe o projeto de lei. O professor Lucas Freire, do Centro Mackenzie de Liberdade Econômica, não tem tanta certeza. Embora seja favorável a uma liberalização nas leis que tratam da venda de drogas no país, ele critica a pretensão de que o governo vai ser capaz de controlar o plantio da cannabis no Brasil.
“Existe uma certa ingenuidade em como o assunto tem sido tratado. Qualquer tentativa de regulação por parte do Estado corre o risco de resultar em consequências não planejadas. Simplesmente, falta a qualquer grupo de burocratas e legisladores a capacidade e o conhecimento para prever todas as consequências não intencionadas na hora de se desenhar uma lei desse tipo”, afirma.
No campo da segurança pública, um dos argumentos em favor da liberação da maconha é a possibilidade de que a polícia deixe de perseguir pequenos consumidores de drogas para se concentrar em crimes mais graves. Mas, no Brasil, o consumo da maconha já é "praticamente legalizado" desde 2006. Uma lei que entrou em vigor naquele ano acabou com a pena de prisão para quem porta a droga para consumo próprio. Quem é flagrado, por exemplo, com uma porção de cocaína será, se muito, encaminhado para “advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade ou medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”.
Isso não resultou em um efeito visível na criminalidade no país, entretanto. Na verdade, a taxa de homicídios manteve uma tendência de crescimento na década seguinte. “Essa lei causou uma explosão no consumo de drogas no Brasil, e o consumo não pode ser vinculado do tráfico internacional de drogas”, ressalta Olavo Mendonça, especialista em Segurança Pública e major da Polícia Militar do Distrito Federal.
Mendonça avalia que, caso o projeto de lei em discussão na Câmara seja aprovado, o tráfico vai tirar proveito das novas regras graças ao seu poder financeiro. “O crime organizado age na cultura, patrocina ONGs, corrompe agentes públicos. É uma indústria bilionária”, afirma. Outra consequência da liberação do plantio, segundo Mendonça, seria trazer para dentro do Brasil um problema que hoje, ainda é limitado dentro do território nacional: “O Brasil, apesar de ser um grande consumidor de droga, não é um grande produtor. As plantações estão principalmente em países vizinhos. Essa proposta pode migrar o plantio para dentro do Brasil”, explica.
Para avançar na tramitação, o substitutivo ainda precisa ser aprovado pela Comissão Especial da Câmara que analisa o texto. De lá, ele vai para o plenário da Casa e, se aprovado, segue para análise do Senado. Para entrar em vigor, a mudança ainda dependeria de sanção presidencial. O governo atual não vê a ideia com bons olhos. O secretário nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas, Quirino Cordeiro Júnior, criticou o projeto em entrevista à Gazeta do Povo e afirmou que o Executivo é contrário à liberação do plantio da maconha no país.
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