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A ciência hoje corre contra o tempo em busca de evidências sólidas no combate à Covid-19. Embora muito se argumente sobre o uso da cloroquina e hidroxicloroquina em pacientes infectados pelo novo coronavírus, até o momento, a comunidade científica não referendou como definitivamente robusto nenhum ensaio clínico a favor desses medicamentos para a doença e não há publicação a respeito do tema em revistas renomadas.
Working papers, de caráter preliminar, apontam para um provável benefício do uso de hidroxicloroquina em pacientes com Covid-19. Esses estudos influenciaram órgãos e profissionais de saúde ao entendimento de que, diante da excepcionalidade do momento, a prescrição do medicamento sob certas condições de segurança é plausível.
Tendo em vista que profissionais e redes de saúde podem recuar quanto à prescrição, quais os desdobramentos jurídicos e bioéticos possíveis?
O que foi permitido
Exclusivamente a critério médico e apenas em casos graves, o Ministério da Saúde permitiu a utilização da cloroquina e hidroxicloroquina durante a pandemia. O órgão salientou que o medicamento não é indicado para quadros leves ou como forma de prevenção à Covid-19, assim como têm alertado cientistas e governadores de outros países.
Neste caso, a utilização fica catalogada como compassiva ou off label - quando o medicamento é utilizado fora das indicações de bula ou protocolos. A responsabilidade de prescrição fica a cargo do médico.
Em movimento semelhante, o Conselho Federal de Medicina (CFM) se posicionou favorável à administração das duas substâncias, embora o parecer destoe do Ministério da Saúde em alguns aspectos. No último dia 23, o CFM afirmou que entende ser possível o uso da cloroquina e hidroxicloroquina em casos desde leves até de último estágio, com pacientes em ventilação mecânica. Os médicos que decidirem pelo tratamento não incorreriam em infração médica.
As considerações do CFM, importante ressaltar, podem ser alteradas a qualquer momento à medida que surgem novas evidências científicas. A prescrição do medicamento deve ocorrer com o consentimento do paciente, sob Termo de Consentimento Informado.
Situação "embaraçosa"
Deixar de utilizar todos os meios disponíveis para o tratamento é uma ação vedada ao médico, segundo o artigo 32 do Código de Ética Médica. Além de permitir a prescrição de medicamentos catalogados como off label apenas em casos excepcionais e via parecer, o documento estabelece que a responsabilidade de administrar o fármaco e eventuais danos ao paciente fica totalmente a cargo do profissional de saúde.
A partir desse pressuposto, embora especialistas notem uma situação embaraçosa e insegura para o médico e a rede hospitalar, apontam para possíveis desdobramentos jurídicos na área cível em caso de recusa, por parte do profissional de saúde, de utilizar hidroxicloroquina para quadros graves de Covid-19.
"Mesmo sem a homologação da Anvisa, há notícias de bons resultados do uso da cloroquina mundialmente, especialmente em casos mais graves da Covid-19. O medicamento tem sido empiricamente utilizado e com comprovação de melhora aos pacientes", diz o advogado José Salamone.
Na opinião de Salamone, se o médico decidir por não administrar o remédio em casos clínicos gravíssimos e o quadro do paciente escalar a óbito, seus familiares poderiam, eventualmente, recorrer à esfera cível com base no que juristas entendem como a "teoria da perda de uma chance". De acordo com Salamone, esse é um conceito que se originou na França e, mais recentemente, tem sido adotado por magistrados brasileiros.
"Caso o profissional se depare com paciente em estado grave, sabendo da existência de experimentos com hidroxicloroquina, não homologados, mas com resultado empírico de que surtiu efeito positivo em determinados casos, amenizando ou até remindo da doença e, mesmo assim, ele se recusar a administrar o medicamento, a família pode alegar a 'perda de uma chance'", explica o especialista em Direito Médico.
Essa aplicação da teoria francesa serviria apenas, como mencionado acima, em casos de último estágio, terminais, nos quais não exista outras hipóteses de remissão da doença possíveis. "Familiares podem questionar, dizendo que médico não permitiu ao paciente a última chance de se recuperar", diz Salamone.
Se a Justiça atender ao questionamento, o hospital é quem deve responder, no que se conhece como responsabilidade objetiva, mesmo que o médico seja o mentor do tratamento.
Imbróglio
Opinião diferente é apresentada por Mérces da Silva Nunes, especialista em Direito Médico e sócia do Silva Nunes Advogados. Ela afirma que, do ponto de vista do Código de Ética Médica, e considerando os possíveis danos que o fármaco pode causar ao paciente, o profissional não incorre em infração de conduta se se recusar a administrar o medicamento em pacientes que solicitarem.
"O médico pauta o exercício da medicina com base em alguns princípios, em especial o da beneficência e da autonomia. Como é uma droga que apresenta efeitos colaterais severos, o médico tem autonomia de decidir não usar a droga. Ele pode notar que fará mais mal do que bem. Não há, portanto, desdobramentos éticos ou jurídicos", defende Mérces.
Como publicou a Gazeta do Povo, pesquisadores têm ciência dos possíveis efeitos colaterais baseados no uso do medicamento, como, por exemplo, danos ao coração (arritmia e miopatia) e complicações à coagulação do sangue. O uso de doses altas do fármaco cloroquina, além disso, poderia ser tóxico e resultar em morte.
Pelo menos 11 pacientes em estado grave que faziam parte de uma pesquisa sobre o uso da cloroquina faleceram após a administração do medicamento em altas doses -- o que não é a proposta dos ensaios clínicos que foram bem-sucedidos. Mas não há comprovação, no entanto, de que os óbitos tenha sido provocados exclusivamente em decorrência do fármaco.
O contrário também pode ocorrer: famílias poderiam recorrer à justiça se o medicamento administrado, sem consentimento por termo, trouxer dano de saúde ao paciente.
"É uma situação embaraçosa. Se o médico indica e traz dano, ele é responsável. Se não indica, com base na falta de comprovação científica do remédio, poderá ser entendido como quem tirou do paciente a chance de viver", afirma Salamone.