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Discussão não pacificada

O que o uso medicinal da maconha e da cloroquina têm em comum e por que você deveria se preocupar

Uso medicional da maconha gera polêmica
(Foto: Unsplash)

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O grande argumento em favor da utilização medicinal de substâncias da maconha, como o canabidiol, é o de que outros medicamentos não atenderiam a quadros severos/refratários de determinadas patologias. E, portanto, este e outros elementos da planta poderiam ser uma alternativa não apenas aceitável, mas também como uma espécie de panaceia. Em geral, as doenças para as quais mais se defende o uso da droga são as epilepsias refratárias.

Por outro lado, durante a pandemia, o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina emergiu como potencial terapêutico contra a Covid-19. Seus efeitos não são indiscutivelmente consolidados, embora pesquisas indiquem que podem haver bons resultados. É necessário reconhecer também que a discussão sobre o tema foi tão longe que acabou virando palco para debate político-partidário, e por diversas vezes se distanciou dos achados científicos.

Mas essas substâncias se tratam ou não de medicamentos para os quais não há, ainda, pacificação na ciência e cujos efeitos podem ser danosos?

Se comparada à maconha, a cloroquina e a hidroxicloroquina têm mais argumentos a seu favor: são usadas há mais de 40 anos no Brasil de forma bem-sucedida no tratamento de doenças como malária e lúpus. A narrativa sobre seus efeitos colaterais, porém, é contraditória. Alguns médicos falam de danos no coração que podem causar arritmia e miopatia, enquanto outros consideram que seus efeitos colaterais são raros, como o presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica, Antônio Carlos Lopes. O que não está mesmo comprovado é se esses remédios de fato têm algum efeito positivo no combate à Covid-19.

Quanto à maconha, há de se entender, em um primeiro momento, duas importantes questões: o uso da Cannabis na medicina não é consenso entre os pesquisadores, porque não há evidências científicas consolidadas, faltam pesquisas. No máximo, o que se sabe, até agora, é que a resposta terapêutica ao uso do canabidiol, em que pese exista, é considerada "modesta". Restam perguntas não respondidas e lacunas de dados, em especial sobre a toxicidade dos componentes da maconha.

Além disso, existem outros medicamentos cuja eficácia e benefícios já foram comprovados pela ciência, após um longo caminho de pesquisas e testes. Isso nos leva à discussão sobre o motivo pelo qual o plantio e o uso da maconha têm sido defendidos quase que de forma panfletária, sem qualquer ressalva.

O assunto é discutido na Câmara dos Deputados, onde tramita um projeto de lei que permite, em larga escala, o cultivo, produção e venda de medicamentos e produtos não medicinais à base de Cannabis. Interlocutores apontam que o contexto de pandemia impossibilita uma discussão mais aprofundada sobre o tema. Críticos à proposta também afirmam que parlamentares estão se utilizando da circunstância na tentativa de aprovar o texto às pressas.

O que dizem as pesquisas sobre canabidiol

Há uma série de anticonvulsivantes e antiepiléticos úteis, cuja eficácia já foi, mundo afora, comprovada por órgãos reguladores para o tratamento de pessoas que apresentam crises convulsivas, das mais "simples" às refratárias. Para cada tipo de crise, além disso, existe um perfil de medicamento mais apropriado - o que também pode variar de pessoa para pessoa.

Estudo publicado pela Sociedade Brasileira de Pediatria revela que, para cada tipo de síndrome epilética, há medicamentos mais indicados, com melhores resultados terapêuticos. A pesquisa fala em pelo menos 16 tratamentos possíveis. Documento recente do Ministério da Saúde também cita vários medicamentos usados para o controle das crises convulsivas mais indicados do que o canabidiol.

Espécie de Anvisa dos EUA, o Food and Drug Administration (FDA), por exemplo, indica tratamentos como a "estimulação do nervo vago" para casos refratários. "Em sua porção cervical esquerda por meio de eletrodo implantável é uma terapia aprovada pelo FDA para epilepsia refratária de início focal em indivíduos acima de 12 anos", sugere.

No Brasil, esse tratamento foi aprovado pela Anvisa em 2000, para pacientes com diagnóstico há mais de dois anos, de epilepsia refratária, focal ou generalizada. Outra opção sugerida pela FDA é a chamada "dieta cetogênica", "indicada para pacientes desde a infância até a fase adulta com epilepsia  refratária".

Mesmo com a insuficiência de resultados de pesquisas, o uso da Cannabis começou a ser cogitado de forma chamada "compassiva" por parte das entidades médicas como o Conselho Federal de Medicina (CFM), e para casos nos quais todo o "arsenal" de medicamentos já consolidados não apresentou efeito. Na prática, isso acaba por restringir muito o número de pessoas que realmente precisaria fazer uso da planta - embora grupos promovam a ideia de que ela serve para uma gama de coisas.

Na contramão, em sua proposta, o deputado Luciano Ducci, autor do PL que propõe à legalização do cultivo da maconha no país, fala em uso "irrestrito" da planta para o tratamento de doenças. Segundo ele, médicos devem ter liberdade de receitarem como entenderem conveniente.

"O canabidiol não deve ser utilizado como medicação de primeira escolha para tratamento de epilepsia. Ele, inclusive, não deve ser utilizado como monoterapia, e sim como tratamento adjuvante", explica o Quirino Cordeiro Jr., médico psiquiatra e hoje secretário no governo. "Exemplo do uso: quando se entra com um antiepilético e ele não surtiu muito efeito".

Médicos que pediram para não ter sua identificação revelada afirmaram à reportagem receber inúmeros pacientes que vão aos seus consultórios solicitando receitas para o uso medicinal da maconha. "Muitos pacientes cujo quadro está normal e outros que utilizam medicamentos que estão surtindo efeito pedem para mudar para o canabidiol", conta.

"Não deveria existir essa situação de alguém procurar médico buscando tratamento com canabidiol já de primeira, sem utilizar outros medicamentos". 

Quirino Cordeiro Jr.

Grupos que atuam na sociedade civil, como o "Mães jardineiras" e "Advocacia", estariam a instruir pacientes nesse sentido, apontam os interlocutores.

Por esse tipo de influência, há o apelo - em larga escala e sem bases científicas - de que a maconha seria benéfica para patologias das mais diferentes naturezas, como câncer, depressão e, até mesmo, contra os danos causados pelo coronavírus. Essa influência vai ainda mais longe, pois há quem sugira que componentes da maconha como o THC, responsável por danos cerebrais e efeitos psicóticos, são eficazes para o tratamento de doenças.

Para Cordeiro Jr., há muita especulação e, no máximo, pesquisas em modelo in vitro. "Há várias etapas de estudo. Se tem resultado positivo em um modelo in vitro, é uma boa notícia, mas é só um primeiro passo", diz. "Mas isso se tornou algo panfletário".

Qual o perigo disso?

A possibilidade de danos para a saúde com o uso de medicamentos sem comprovação não é fato para o qual todos atentam. Sem entrar em mérito de discussão político-partidária ou ideológica, promover essas ideias de maneira panfletária, como fazem muitos, é significativamente perigoso.

Vale lembrar do fatídico episódio da chamada "pílula do câncer" - a fosfoetanolamina - e do frisson pelo tratamento. Casos como esse são de potencial perigo ao passo em que promovem um fenômeno de redução de percepção de risco.

"Se a sociedade fica o tempo inteiro sendo bombardeada com informações falsas que não têm respaldo científico, como a de que pode-se utilizar maconha para o tratamento de Alzheimer e de que isso vai ser muito bom, isso pode desincentivar a procura por tratamentos que realmente são comprovados e que têm eficácia".

Quirino Cordeiro Jr.

O secretário ainda acrescenta: "pacientes e outros consumidores podem ser influenciados a não usar terapias comprovadas cientificamente para tratar doenças graves e até fatais. Tais pessoas podem ser levadas a usar produtos que não lhes trarão benefícios terapêuticos, agravando, assim, seus quadros clínicos".

A frente de pressão pode vir por parte de grupos bem intencionados ou por, como afirmam os críticos à propostas de legalização do cultivo da cannabis, lobby que, em última instância, estariam interessados na saúde dos pacientes. Segundo Ducci, indicadores financeiros falam em um universo de U$ 166 bilhões circulando no mundo em relação a esse mercado.

"Não sou contra a criação de um novo mercado, do ganho da indústria. O problema é criarmos um mercado consumidor que pode causar dano para pessoas, para pacientes e para todo o conjunto social. Na verdade, é mercado que seria para poucos ganharem dinheiro, em desfavor do interesse da maioria das pessoas".

Quirino Cordeiro Jr.

Outros perigos possíveis: "em decorrência do grande movimento internacional em favor da flexibilização do pretenso uso terapêutico da Cannabis e substâncias relacionadas (na imensa maioria das vezes totalmente desprovido de embasamento científico), em alguns estados americanos e países europeus, houve uma proliferação de produtos alimentícios, de saúde e cosméticos, que afirmam conter canabidiol e outros derivados da cannabis para usos terapêuticos ou médicos. Tal situação coloca os consumidores em risco, pois esses produtos, na imensa maioria das vezes, não provaram ser seguros ou eficazes".

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