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Em julgamento de duas ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) que tratavam da vacinação contra a Covid-19 e de um recurso extraordinário relacionado à vacinação obrigatória de crianças e adolescentes, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, nesta quinta-feira (17), que estados e municípios podem determinar que a vacinação seja obrigatória, desde que não recorram a medidas invasivas e coercitivas para imunizar a população, e que os entes federados podem ter planos de imunização locais. A compulsoriedade da vacina poderá ser implementada por medidas indiretas, como a restrição ao exercício de determinadas atividades ou o acesso a determinados locais. A decisão valerá a partir da publicação no Diário da Justiça (DJ), da União.
De acordo com o professor de Direito Constitucional e procurador do Ministério Público Federal André Borges Uliano, tem havido uma confusão no sentido de que a Corte teria tornado a vacinação obrigatória. O jurista explica que o que ocorreu foi o reconhecimento da constitucionalidade de que estados e municípios poderão tornar a vacina obrigatória no futuro, no caso de fatores sanitários devidamente comprovados exigirem tal medida. Já a determinação de sanções ou restrições a quem optar por não receber a imunização pode ocorrer somente por meio de lei, e não apenas por decretos municipais ou estaduais.
A tese fixada, proposta pelo ministro Ricardo Lewandowki, relator da ADI 6.586, e acompanhada pelos outros ministros, foi a seguinte: “A vacinação compulsória não significa vacinação forçada, por exigir sempre o consentimento do usuário, podendo, contudo, ser implementada por meio de medidas indiretas, as quais compreendem, dentre outras, a restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares, desde que previstas em lei, ou dela decorrentes, e (i) tenham como base evidências científicas e análises estratégicas pertinentes, (ii) venham acompanhadas de ampla informação sobre a eficácia, segurança e contraindicações dos imunizantes, (iii) respeitem a dignidade humana e os direitos fundamentais das pessoas; (iv) atendam aos critérios de razoabilidade e proporcionalidade, e (v) sejam as vacinas distribuídas universal e gratuitamente (...)”.
“Há uma confusão grande entre tornar a vacina obrigatória, que é algo que não foi feito pelo STF, e afirmar que o dispositivo que permite que autoridades públicas tornem a vacina obrigatória no futuro é constitucional e pode ser deflagrado pelos entes”, explica Uliano.
Veja abaixo respostas às principais dúvidas sobre as decisões do STF referentes à ADI 6.586 – movida pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) com a solicitação de reconhecimento da competência de estados e municípios para exigir a vacinação compulsória; à ADI 6.587, ajuizada pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) com a reivindicação da não obrigatoriedade da vacinação; e o Recurso Extraordinário (RE) 1.267.879, que trata da não obrigatoriedade de os pais vacinarem seus filhos menores de idade por motivos filosóficos ou religiosos.
1. Se eu não quiser tomar a vacina contra a Covid-19, serei obrigado?
O ministro Ricardo Lewandowski, relator da ADI 6.586, declarou em seu voto que "a intangibilidade do corpo humano e a inviolabilidade do domicílio" são garantias essenciais que impedem que alguém seja levado à força para receber a imunização. Lewandowski, no entanto, sustentou que "a saúde coletiva não pode ser prejudicada por pessoas que deliberadamente se recusam a ser vacinadas”. Os ministros que votaram em seguida argumentaram que o fator compulsório da vacina não significa que a população será forçada a recebê-la. A Corte, contudo, determinou que a vacinação compulsória pode ser implementada por medidas e restrições indiretas.
Na prática, ninguém pode ser forçado diretamente a tomar a vacina contra a Covid-19, mas a União, estados e municípios têm autonomia para no futuro, caso desejarem, criar medidas que indiretamente “obriguem” que todos recebam a imunização.
Essas medidas, conforme explica Fernando Menezes, professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), podem ser compreendidas em uma comparação com o cidadão que, mesmo estando sujeito à obrigatoriedade do voto, decide não votar. “O indivíduo pode ser punido não tendo acesso a certos serviços que dependam do estado, ou a certos benefícios. Na questão do voto, mesmo sendo obrigatório, ninguém tem o direito de pegar o sujeito e arrastá-lo até a urna. Mas se a pessoa não vota nem justifica, fica impedida, por exemplo, de tirar passaporte ou de se candidatar a um concurso público. Esse é o estímulo indireto para que a vacina seja obrigatória”, observa Menezes.
“O que fica claro é que os ministros foram numa linha que é não criar um mecanismo de tornar a vacinação compulsória no sentido de ser forçada, porque isso fica compreendido que é contra o sistema constitucional de liberdades”, explica.
2. Que tipos de restrições e medidas o poder público pode determinar a quem optar por não se vacinar?
A restrição ao exercício de atividades ou à presença em determinados locais, e até mesmo a proibição do acesso a serviços ou benefícios que dependam do Estado podem ser utilizadas para convencer os cidadãos a serem imunizados.
“O serviço aéreo, por exemplo, apesar de ser executado por empresas privadas, é o Estado que determina várias regras por meio da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC). Seguindo a lógica de que a pessoa que não foi vacinada pode contaminar os outros, poderia haver uma proibição de utilizar o serviço a quem não estiver imunizado”, declara Menezes.
O jurista explica que essas medidas restritivas devem ficar limitadas a serviços menos essenciais. “Não ter acesso a crédito em um programa de fomento lançado por um banco público pode ser razoável. Por outro lado, o poder público não pode limitar o cidadão de ter acesso, por exemplo, ao serviço público de saúde. Há um limite do que não é razoável dentro das próprias regras constitucionais”, afirma.
Uliano aponta como possíveis efeitos, caso a vacinação seja tornada obrigatória em um determinado estado ou município, que as pessoas poderão ter que apresentar comprovação da imunização para acessar locais com grande fluxo de pessoas, como shoppings ou estádios de futebol, e até mesmo que empregadores solicitem aos funcionários essas comprovações como condição para manter o vínculo de seus empregados. “Vale destacar que o que for aprovado em lei dentro de um determinado estado, por exemplo, precisa ser razoável. Se houver medidas irrazoáveis, a própria lei que determinar isso pode ser julgada inconstitucional”, observa.
Quanto à aplicação de multa, ambos os juristas, apesar de atestarem que não é uma medida que possa ser eliminada, avaliam que são reduzidas as possibilidade de serem impostas.
3. O que garante que as vacinas distribuídas serão seguras?
Na quinta-feira (17), o ministro Ricardo Lewandowski decidiu que estados e municípios podem distribuir e aplicar vacinas contra a Covid-19 mesmo sem a autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), caso a agência reguladora não tenha feito a análise dos imunizantes em até 72 horas após seu registro.
Porém, na tese fixada da ADI 6.586, consta que as vacinas devem ter como base evidências científicas e análises estratégicas pertinentes e virem acompanhadas de ampla informação sobre a eficácia, segurança e contraindicações dos imunizantes. Ainda que isso não seja feito pela Anvisa no período delimitado, deve-se garantir que o imunizante tenha passado por todos os testes de segurança e eficácia de agências sanitárias estrangeiras. Essa medida está determinada também no art. 3º inciso VIII da lei 13.979/20, sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro em fevereiro deste ano.
Então, ainda que não haja aprovação técnica por parte da Anvisa no tempo hábil, o requisito tanto de segurança quanto de eficácia é que o imunizante tenha obtido aprovação estrangeira de um órgão regulador de credibilidade.
4. Terei de vacinar os meus filhos mesmo que considere a vacina insegura?
No julgamento do RE 1.267.879, Luís Roberto Barroso propôs – e foi acompanhado por unanimidade pelos outros ministros – a fixação da seguinte tese, com repercussão geral: "É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, (i) tenha sido incluída no programa nacional de imunizações; (ii) tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei; (iii) seja objeto de determinação da união, estados e municípios, com base em consenso médico científico. Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar".
Esse recurso extraordinário, entretanto, não está vinculado diretamente à vacina da Covid-19. O recurso originou-se em ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público de São Paulo contra um casal vegano que, em razão de sua filosofia que é contrária a intervenções médicas invasivas, optou por não cumprir o calendário obrigatório de vacinação de uma criança sob sua responsabilidade legal.
Porém, de acordo com as decisões recentes da Corte, os pais e responsáveis terão a obrigação de vacinar seus filhos e dependentes legais contra a Covid-19, da mesma forma que acontece com outras vacinas que compõem o calendário nacional de vacinação do Brasil, caso o estado ou município em que residem venha a determinar a obrigatoriedade da imunização.
Uliano, contudo, pontua que essa é uma questão bastante longínqua, porque crianças e adolescentes não são um público que vem sendo considerado como prioritário nos testes para o desenvolvimento das vacinas, e a aplicação para eles ainda pode demorar vários meses.
5. Houve agressão às liberdades individuais por parte do STF?
Na avaliação de André Uliano, apesar de a pandemia do coronavírus ter trazido um retrocesso sem precedentes aos direitos civis, com diversas medidas desproporcionais adotadas por gestores públicos, as decisões recentes do STF com relação à vacinação não trazem em si autoritarismo, ainda que possa haver abusos em sua aplicação pelos entes federados.
“Na pandemia, vimos medidas descabidas, além de várias narrativas oportunistas. Vimos grupos políticos promovendo aglomerações e estava tudo bem, porém, quando outro grupo fez o mesmo passaram a se referir a este como genocida, por exemplo. Além disso houve diversos ataques iliberais aos valores democráticos”, aponta o professor de Direito Constitucional.
Para ilustrar o contexto relatado, Uliano cita o estudo científico “Covid-19 emergency measures and the impending authoritarian pandemic” (Medidas de emergência da Covid-19 e a pandemia autoritária iminente), que aborda ataques às liberdades civis, às liberdades fundamentais, à ética da saúde e à dignidade humana que ocorreram desde o início da pandemia.
“Tudo isso gera um receio de que pontos importantes do enfrentamento à pandemia sejam desvirtuados e usados para fins autoritários. Como a decisão do STF vem nesse contexto, acho natural que haja esse receio. Mas, quanto a essas últimas decisões relativas à vacinação, particularmente não vejo como decisões autoritárias ou que imponham retrocessos desmedidos a direitos fundamentais”, declara.
Fernando Menezes endossa a avaliação de Uliano e entende que as liberdades individuais foram contempladas na decisão. Quanto à vacinação, ele afirma que não se trata de um caso meramente individual, mas de uma questão que envolve toda a sociedade quanto aos riscos da pandemia.
“Se alguém aceita o risco de ficar doente de forma isolada é uma questão pessoal, mas em sociedade não é assim. No Direito, na medida em que o sujeito prejudica a si próprio, é uma questão pessoal. Mas quando essa decisão afeta aos outros, há um limite para essa liberdade. Acho que esse é um caso típico da situação em que estamos vivendo”, destaca.