90% do material da casa original foi utilizado na relocação da residência.
"É uma casa de madeira. Poderia ter se incendiado. A sobrevivência da Casa Gomm, com tantas mudanças, é um verdadeiro milagre."
Rosina Parchen, arquiteta, coordenadora do Setor do Patrimônio do governo do Paraná.
Durante meio século, uma mansão de madeira, erguida no final da Avenida Batel, serviu de "embaixada do mundo" em Curitiba. Chamavam-na Casa Gomm. Falar dela equivalia a invocar a aristocrática família inglesa que ali vivia uma gente elegante e poliglota que por certo causava estranheza no ainda distante e rural estado do Paraná.
A Casa Gomm era sobretudo sinônimo de festa, no melhor sentido da palavra. Uma open house, como se dizia, aberta para saraus, colóquios e jantares que em resumo reduziram as distâncias entre a capital do estado e o planeta. Basta lembrar que, na década de 1950, surgiu ali uma canção francesa que chegou às paradas de sucesso, Monsieur Le Consul à Curityba.
VÍDEOS: O depoimento da família Gomm e a canção Monsieur le Consul à Curityba
Trata-se de um caso único. Construída no estilo das edificações da Nova Inglaterra, EUA, a "Gomm" se impõe pela arquitetura grandiloquente. É, por isso, patrimônio tombado pelo estado desde 1989. Mas é também patrimônio imaterial, posto que naquele endereço se desenvolveu um espaço de trocas culturais sem as quais, arrisca, a cidade teria patinado no atraso umas tantas décadas.
A família Gomm gostava de receber particularmente estrangeiros que circulavam pelo estado a serviço da Light ou das redes ferroviárias internacionais, para citar dois grupos de convivas da minúscula colônia inglesa. O que discutiam, a música que ouviam e até o que comeram no casarão que tinha três pisos, seis lareiras, bosque e até um haras serve de pasto para pesquisadores da vida privada. Os historiadores se rendem, não há como diante de Luísa, uma das matriarcas dos Gomm, a primeira mulher a pilotar um avião no estado, nada menos do que nos idos de 1942.
Apesar de tudo isso, "a Gomm está em pé por milagre", como diz a arquiteta Rosina Parchen, coordenadora do Patrimônio do Estado. Na década de 1980, a chácara de 20 mil metros quadrados em que estava a construção foi vendida pelos cinco herdeiros George, Irene, Cosme, Henrique e Blas. É assunto espinhoso. Contra as evidências de que seria preservado, o local virou sede do shopping Pátio Batel, o que implicou na transferência da casa para um fundo de vale, no mesmo terreno, no encontro das ruas Bruno Filgueira com a Hermes Fontes. Quanto ao bosque, "tombou", dando lugar ao centro comercial a ser inaugurado em abril do ano que vem.
A "mudança da casa" é considerada um exemplo de perícia do arquiteto Humberto Fogaça. Está tal e qual. Em breve o restante de terreno em que está será batizado de Praça Luísa Gomm e a mansão servirá de sede para o setor de Patrimônio do Estado. Passou por novo restauro, na ordem dos R$ 160 mil, custeado pelo empresário Salomão Soifer, em uma das muitas trocas feitas até agora para compensar as alterações urbanas provocadas pelo shopping o que inclui até a abertura de uma nova rua no Batel.
É um final feliz para a Casa Gomm, ou quase. Todas a negociações em torno do local só vieram a provar a fragilidade do patrimônio, cujas regras têm preço. No meio de tanta transação, a mansão de madeira poderia ter tido o mesmo destino do bosque a borracha. Resta agora apostar que a presença de um órgão do estado no local amenize o estrago o que é um alívio para a família. A propósito, a quem os procura, os Gomm não negam palavra para falar sobre o que ali viveram. Conversar, afinal, foi a especialidade que desenvolveram quando a casa onde moravam era um pedacinho do mundo no coração do Batel.
O incrível Natal na casa de Isabel e Luísa Gomm
"Quem vai tirar o caroço das ameixas?", perguntava Isabel Whiters Gomm aos netos, às vésperas do Natal. Precisava de ajuda. Isabel filha de ingleses e mulher do industrial britânico Harry Blas Gomm preparava todos os anos uma receita trazida da terra da rainha, em panela especial. Virou tradição. O pudim de Natal era o ponto alto do almoço que os Gomm ofereciam para convidados no bosque da mansão em que viviam, na Avenida Batel.
"Acho que eu comia todas as ameixas", diverte-se a neta Irene Gomm, 78 anos. "Você acredita que cantávamos em inglês em volta do pudim?", acrescenta o advogado Henrique Gomm Neto, 65. A convite da Gazeta do Povo, os dois irmãos revisitaram a casa onde cresceram, reinstalada na futura Praça Luísa Bueno Gomm. Citaram o dia em que Papai Noel veio a cavalo. E a "sala húngara", reservada às crianças até que pudessem frequentar o espaço dos adultos.
Antes do famoso almoço havia uma espécie de baile de Natal, no dia 24, para até 200 convidados. "As mulheres usavam longo, os homens smoking. Era uma Belle Époque tardia", comenta o caçula dos Gomm.
Na Casa Gomm não havia monotonia. Por ocasião da coroação de Elisabeth II, em 1953, festa. Em 1954, recepção para a miss Brasil Marta Rocha. A visita mais ruidosa, porém, teria sido a do compositor francês Marc Hevral, talvez em 1949. O visitante conheceu o cônsul inglês Harry Blas Gomm, filho de Isabel, marido de Luísa, e compôs Monsieur Le Consul à Curityba. A música que fez sucesso na França, fala de um lugar distante, bucólico, de uma casa cercada de árvores e até de um cacto gigante. Uma regravação disponível na internet, da década de 1960, traz Francis Linel cercado de jovens negras, encenando a letra que fala de uma criada chamada Maria e de samba.
O grande fato da vida dos Gomm, contudo, é mesmo Luísa, mulher digna de uma biografia. Avançada, filha de diplomata, viajada, fez muitos amigos aqui, mas encontrou poucas interlocutoras à altura. Foram suas amigas Risoleta Codega, Didi Caillet, Hélène Garfunkel, Dalila Lacerda, Rosy Pinheiro Lima e Margarida Wollemann. Dentre suas maiores proezas está a de ter sido aviadora. Tirou brevê para ir à fazenda da família, em Piraí do Sul, nos Campos Gerais. Foi mais longe pilotou na Noruega e cruzou o Atlântico rumo à Itália. Seu lema, diz Irene, era "para mim nada é impossível".
Vida e Cidadania | 4:38
Durante mais de meio século, residência aristocrática da Avenida Batel serviu de espaço para encontros diplomáticos e reuniões sociais nas quais Curitiba fazia sua conexão com as ideias modernas.
VIDA E CIDADANIA | 4:12
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