O estouro do pavimento da Avenida Iguaçu, no último sábado à tarde, deu corpo a uma desconfiança coletiva que se expande ao ritmo dos graus Celsius. Entre falta de água prolongada, boatos sobre crise de abastecimento de sorvete e flagra de pessoas andando nuas pela rua, a cidade conhecida pelo frio climático e comportamental experimenta fenômenos singulares. Curitiba está perto de seu ponto de ebulição, e tudo o que outrora era sólido agora se desmancha no ar.Ontem, a pista recuperada da Iguaçu, na esquina com a Rua Saint-Hilaire, no Água Verde, ainda brilhava e cheirava a piche úmido. A alguns metros dali, o comerciante Adriano Moreira Paes, de 43 anos, mal podia conversar sobre o ocorrido. Proprietário de uma mercearia e distribuidora de água, passa o dia ao telefone atendendo a pedidos de entrega de galões. Às 16 h, estava próximo da centésima venda do dia. "Os três entregadores saem a toda hora, e sempre com a bicicleta lotada", ilustra.
Para dar conta da demanda, ele alugou temporariamente o imóvel ao lado para usar como depósito de água. Na sexta-feira passada, em meio a tanto movimento, foi assaltado pela primeira vez em 23 anos. Adriano se recusa a apontar uma relação direta entre os dois eventos.
O leiturista Mauro César Fabrin, de 34 anos, para embaixo de uma árvore na Rua Barão do Rio Branco, no Centro. A sombra facilita a leitura do PDA e alivia o calor deste funcionário da Copel que passa sete horas por dia andando pela rua. Por causa da longa caminhada, evita levar o peso adicional de uma garrafa de água. "De quinze em quinze casas peço um copo de água. Ou então compro mesmo", relata. Acostumado a trabalhar em bairros residenciais, foi temporariamente deslocado para a região central, onde descobriu o alívio imediato provocado pelo ares-condicionados do comércio. "Normalmente o relógio é dentro, então dá pra aproveitar um pouco", contenta-se.
O operário Ozair Fernando Batista, de 23 anos, mantém apenas a cabeça acima da linha do asfalto enquanto trabalha na ampliação da rede coletora de esgoto da Rua João Negrão, também no Centro. Descobriu que o capacete branco também é um eficiente boné. No abafamento subterrâneo, inveja os colegas cuja função é operar as máquinas. Estes, recebendo o bafo quente que sai do cano de escape, o invejam de volta. "A gente já tá acostumado. Mas ainda sua bastante", conta.
Chafariz
A Praça 29 de Março, no bairro Mercês, é um dos pontos preferidos dos banhistas de chafariz de Curitiba. A arquitetura da fonte proporciona uma cascata baixa e larga, comportando vários frequentadores ao mesmo tempo. Mas ontem apenas sacolas de plástico podiam ser vistas na água verde clara. "Essa água é muito suja, pode fazer mal", alerta o auxiliar de serviços gerais José, na casa dos 50 anos, deitado à sombra de uma árvore, usando apenas calção e óculos de grau e lendo uma edição vencida porém recente da revista Caras.
Às 16h30, conta que trabalha em uma construção próxima até as 18h30 e depois costuma descansar na praça. "Hoje [ontem] fui ao médico. Aproveitei que na segunda tem menos movimento", diz ele, justificando a discrepância de horário. De uma garrafa de água mineral sem rótulo, bebe um líquido esbranquiçado. "Nesse calor tem que beber bastante água. Essa aqui eu misturo com suco de pacote que compro no mercado. Daí fica assim", explica.
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Interatividade
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