Cenas do cotidiano da pesca. Ainda de madrugada, Márcio Ramos e Alex Silva preparam as embaracações para entrar no mar| Foto: Daniel Castellano / Agência Gazeta do Povo

Pescador leva vida normal em terra

Um pobre coitado que, se duvidar, mora na própria canoa. Um matuto que só sabe de peixes e nada mais. O visual rústico dos pescadores profissionais ainda hoje pode gerar imagens como essas, que, no entanto, se quebram após cinco minutos de conversa.

"Por incrível que pareça, há pessoas que acham que a gente mora nesses barracões aqui ao lado do mercado de Matinhos, onde guardamos nossos equipamentos. Muitos não imaginam que o pescador tem uma casa normal ou que ele possa ter um carro, como qualquer outra pessoa", diz o pescador Ideraldo Santana. Segundo ele, um trabalhador da pesca pode ganhar tanto ou mais do que outros profissionais do meio urbano, vivendo com conforto e dignidade.

Umberto Giacomoni é outro pescador que faz questão de combater qualquer estereótipo. Além de ser mestre na arte da pesca, no ano que vem ele será também bacharel em Gestão Ambiental pela Universidade Federal do Paraná - Litoral. "Não é porque sou pescador que vou me acomodar", diz ele, que a vida toda leu muito e nunca parou de estudar. Só de inglês, foram oito anos de estudo, complementados por mais duas viagens aos Estados Unidos e à Inglaterra. "Sempre busquei informação para poder conversar com qualquer pessoa que fosse, seja um colega ou um Ph.D em alguma coisa."

Conhecimentos múltiplos

Para sobreviver na profissão, um pescador precisa dominar múltiplos saberes, que são aprendidos somente com a prática diária e o contato com os mais velhos. Na área de geografia, por exemplo, é preciso saber de onde vem os ventos e as correntezas, assim como é preciso saber se orientar por diversos meios, usando pontos referenciais como encostas, ilhas, ou então pelas estrelas. "Todo mundo aqui tem uma carta náutica dentro da cabeça", lembra Umberto. Conhecer a relação das fases da lua com cada espécie de peixe é outro aspecto fundamental – lua cheia é boa para pegar tainha, mas é ruim para pegar o cação, que nessa fase vai para o fundo do mar, exemplifica o pescador Márcio Crisanto. "Sem falar que todo pescador precisa ser um pouco mecânico", completa Santana. "Senão o motor do barco te deixa na mão."

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Segurança

Coletes salva-vidas e kits de primeiros socorros são exigências da Capitania dos Portos para quem vai navegar

Depois do acidente vivido pelos primos Márcio e Alex, muitos passaram a levar mais em conta as recomendações de segurança da Capitania dos Portos. Dentre elas, a de que todos os condutores de embarcações precisam dispor de coletes salva-vidas. "Só que depois de um tempo, muita gente voltou a relaxar e a esquecer dos coletes", conta o pescador Gerson Crisanto, o Gugo. O motivo, segundo ele, é que os coletes atrapalham a movimentação dos pescadores. "Sem falar que a turma gosta de tirar sarro de quem usa colete. É difícil mudar certos hábitos da gente", reconhece Gugo.

Aos pescadores mais inexperientes e amadores, que estejam querendo se lançar ao mar, aí vão algumas dicas: segundo a Capitania dos Portos, todos os donos de embarcação devem levar a bordo kits de primeiros socorros, luzes de navegação noturna, entre outros itens. Essas orientações precisam ser seguidas, para que o riscos da pescaria sejam reduzidos. E antes de entrar no mar, uma conversa sobre o tempo, as condições do mar e as correntezas com pescadores profissionais é a coisa mais prudente a ser feita.

Fartura ou redes perdidas. Risadas ou lágrimas. Nenhum pescador imagina o que o destino lhe reserva depois que ele entra no barco e sai para o mar. E é justamente essa incerteza, aliada à liberdade que a profissão proporciona, que faz com que todo o dia eles levantem cedo, deixem seus familiares em casa e enfrentem – de peito aberto – mais uma vez o oceano que lhes fornece o sustento.

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"Há dias em que você sai e volta com uma tonelada de peixe. Há dias em que você volta só com lixo na rede. Pesca é assim. Por isso que é tão fascinante", lembra o pescador Umberto Giacomoni, 33 anos, o Chucky, um dos muitos pescadores da Colônia de Matinhos. Segundo ele, na pesca, técnica e sorte são fatores indissociáveis. "Para pegar a tainha, que aparece por aqui a partir de maio, não basta soltar a rede e esperar. Afinal, é um dos peixes mais inteligentes desse mar", conta. "É preciso entendê-la bem e criar estratégias para cercá-la, senão ela foge facilmente."

Porém, toda a perícia não basta, se o sujeito não tem sorte. "Pescando com um camarada azarado, quantas vezes eu chegava num ponto repleto de cardumes e logo o barco enguiçava. Era azar puro. Sem explicação", garante Chucky. Fonte de surpresas

O pescador Ideraldo Luís Santana, 43 anos, o Dino, é outro que deixou de buscar explicações lógicas no mar. "Vemos cada coisa que, contando, vão falar que é história de pescador. Mas o que dizer do peixe espada que apareceu aqui, furando a perna de um banhista?", diz ele, referindo-se a um marlin de dois metros que surpreendeu a todos na Praia Central de Matinhos em 2008. "Esse peixe vive muito distante daqui. Como é que foi parar em Matinhos?", questiona.

Mas nada se compara em surpresa, segundo Dino, à que ele teve ao se deparar com um tubarão tintureira de dez metros, que pesava 700 quilos. "Foi na década de 1980. O cação que ficou preso na rede do meu amigo Jango era tão grande, que ele precisou voltar na colônia para pedir ajuda, senão não conseguia embarcar o peixe. Eu e mais alguns amigos fomos ajudá-lo." Confirmando a história, Jango – João Silva, 62 anos, – lembra como essa pesca foi tão extraordinária que virou reportagem no Fantástico. "Enchemos um balde só com o óleo do fígado dessa mangona (espécie de tubarão)", conta Jango.

Um dia após o outro

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De todas as histórias vividas pelos pescadores de Matinhos, a dos primos Márcio Ramos, 40 anos, e Alex Silva, 32, é uma das que mais impressiona. Há três anos, no dia 20 de fevereiro, os dois foram encontrados à deriva no mar, perto da Ilha dos Currais. Isso após terem passado 24 horas sem comer, beber ou dormir. Os dois naufragaram próximo da Barra do Saí, depois que uma série de ondas invadiu a embarcação que eles ocupavam. O barco foi a pique tão rápido, que não tiveram tempo de vestir coletes salva-vidas nem de salvar uma garrafa d’água. Cada um só conseguiu agarrar um pedaço de isopor e um galão vazio de combustível, o suficiente para mantê-los boiando.

"À noite, sentia os peixes passando debaixo de nós. O medo era que viesse algum tubarão para comer a gente", conta Alex Silva, que lembra ainda de ter tido alucinações durante a madrugada no mar. "Ele enxergava veleiros vindo em nossa direção. Eu concordava para não desanimá-lo, mas na verdade não havia nada. Só no dia seguinte, um pescador de Ipanema passou por nós e finalmente nos resgatou", conta Márcio Ramos.

Depois de salvos e de terem ido direto para o hospital, onde receberam seis litros de soro cada um, os primos contam que pensaram seriamente em mudar de profissão. "O trauma foi grande", diz Alex, que chegou a ficar um mês sem trabalhar. O intervalo na pesca, porém, não durou muito e logo os primos estavam trabalhando juntos novamente. "Essa vida é sofrida. Mas não dá para trocar a liberdade que temos no mar, sem patrão e sem destino, por nada nesse mundo. Até tentei, mas vi que o meu lugar é aqui mesmo", afirmava Alex, pouco antes de partir para mais uma jornada ao lado do primo Márcio.