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Uma proposta legislativa de autoria da vereadora transexual Benny Briolly (PSOL-RJ), protocolada na Câmara Municipal de Niterói, no Rio de Janeiro, no último dia 19, prevê que crianças e adolescentes possam utilizar nome social em escolas, sem citar claramente ou ressaltar a necessidade de autorização prévia de representantes legais. Se porventura vier a ser aprovada, a permissão se estende, segundo o que propõe o documento, a todos os ambientes institucionais municipais, a exemplo de hospitais, postos de saúde e centros de assistência social.
Compete ao município gerir a educação em creches, pré-escolas e o ensino fundamental, compreendendo, sobretudo, alunos menores de 18 anos. O PL chegou a entrar em pauta nesta quarta-feira (20) na casa legislativa, mas, por pressão de vereadores, não foi sequer lido. "Qualquer aluno poderá solicitar o uso do nome social na matrícula ou a qualquer momento", propõe Benny no projeto, sem citar qualquer necessidade de autorização prévia parental. Mais tarde, após repercussão negativa, Benny teria afirmado que o projeto não veda o consentimento dos pais.
A reportagem não conseguiu localizar seu gabinete, para esclarecer a informação e ouvir Benny. Se houver resposta à tentativa de contato, a Gazeta se compromete a atualizar o conteúdo.
O direito ao uso dos nomes sociais em escolas por parte de alunos travestis ou transexuais maiores de 18 anos foi disposto em Resolução de 2017 do Conselho Nacional de Educação (CNE), homologada em 2018 pelo Ministério da Educação, à época capitaneado por José Mendonça Filho.
A norma, do Poder Executivo, é o atual documento jurídico de máxima autoridade que trata diretamente do tema. Como explica o professor de Direito Constitucional e doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (SP) Antônio Jorge Pereira Júnior, cabe exclusivamente à União legislar em matéria de direitos de personalidade e de capacidade civil – a exemplo da autonomia civil dos menores de 18 anos e o poder familiar.
Ainda segundo o que estabeleceu o documento do CNE, alunos com idade inferior a 18 anos podem solicitar o uso do nome social "durante a matrícula ou a qualquer momento", sob a condição de que haja consentimento de representantes legais. O Colégio Pedro II, da cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, foi um dos primeiros a regulamentar o uso do nome social em suas unidades. Para defensores da medida, ela garante dignidade humana e impede a evasão escolar.
"A Resolução [do CNE] está escorada em outros diplomas de direitos civis e permite também que os alunos menores de idade adotem nome social (art. 4), desde que haja assistência (entre 16 e 18 anos de idade) ou representação (para os menores de 16 anos) de seus representantes legais", explica o especialista.
Até agora, em casos em que não houver consentimento da família, a matéria pode ser judicializada. "Neste caso, uma vez que há direito de caráter personalíssimo para solicitar ser reconhecido e tratado pelo nome social, muito provavelmente os pais ou responsável perderiam o conflito", diz Pereira Júnior.
Mas a proposta de Benny, ao inovar, excluindo a necessidade de consentimento da família para o uso do nome social, contradiz o que prevê a Resolução do CNE. E, uma vez que a Câmara Municipal poderia apenas referendar o que já está em norma de âmbito federal, sem afrontar a competência da União, a tendência é que o PL não prospere, indica Pereira Júnior.
Heloisa Câmara, professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), afirma que o "reconhecimento é importante porque há diversos relatos que identificam o desrespeito à identidade de gênero como causa de evasão escolar de transexuais, o que afeta enormemente a expectativa de futuro".
"Considero que a proposta legislativa pretende justamente evitar intimidações, assédios e afronta à dignidade. Sobre a não exigência de autorização dos responsáveis, não vejo inconstitucionalidade em si, inclusive porque a experiência escolar mostra que as situações de desrespeito podem acontecer muito antes dos 18 anos. Sendo o princípio do melhor interesse da criança o norte ao tratar dos direitos de crianças, me parece que sendo o respeito à sua identidade o melhor interesse, não há inconstitucionalidade, mas justamente respeito constitucional e ao Estatuto da Criança e do Adolescente", diz a especialista.
Ainda segundo ela explica, não há propriamente um conflito entre a Resolução do CNE o PL, "mas uma maior autonomia nos requisitos exigidos. Haveria conflito se a lei municipal estabelecesse que não aceita nome social, por exemplo. Ao exigir menos do que a resolução, o município estabelece uma ordem mais protetiva aos jovens".
"Crianças trans de fato existem", defende autora do PL
"Esse projeto de lei é para garantir, para salvar, resgatar tanto as identidades quanto a dignidade, e garantir que a lei seja cumprida", diz Benny, em vídeo publicado na rede social Instagram. "As crianças trans de fato existem, e as políticas públicas precisam dar conta dessas crianças. A ciência está avançando e entendendo que não respeitar o direito dessas crianças é um risco que pode ter sequelas gravíssimas sobre todo o desenvolvimento social delas".
À época da aprovação da Resolução do CNE, Mendonça Filho afirmou que se tratava de "uma antiga reivindicação do movimento LGBTI e que, na verdade, representa um princípio elementar do respeito às diferenças, do respeito à pessoa humana e ao mesmo tempo de um combate permanente do Ministério da Educação contra o preconceito, o bullying, que muitas vezes ocorrem nas escolas de todo o país". Também quando o CNE decidiu pela Resolução, a falta de diálogo com opositores à ideia foi evidenciada e criticada. Foram ouvidos, durante as discussões, apenas representantes do movimento LGBT.
Amplamente utilizado por defensores do nome social, o argumento de que crianças transexuais de fato existem é contestado por especialistas como Michelle Cratella, médica presidente do American College of Pediatricians. Promotores da medida, em especial profissionais de saúde, costumam se basear na premissa de que, se as crianças “insistem consistente e persistentemente” que não são do gênero associado ao seu sexo biológico, então são inatamente transgêneros.
Ancorada em dados científicos, Michelle contradiz o argumento e chega a falar em "abuso de menores institucionalizado" e "em larga escala" - o que, para a especialista, decorre da proporção tomada pela ideologia de gênero no âmbito da pediatria. "O que acontece é que se está usando o mito de que se nasce transgênero para justificar uma experimentação massiva, incontrolada e inconsequente sobre as crianças", diz ela, afirmando que do ponto de vista científico, portanto, não há comprovação de que crianças nascem trans.
A equipe do Sempre Família, da Gazeta do Povo, traduziu ao leitor os argumentos defendidos pela médica, em matéria disponível neste link.
Críticas
Vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Niterói, o vereador Douglas Gomes (PTC-RJ) critica a proposta legislativa e afirma que se trata de uma tentativa de "engenharia social" em escolas. "Essa ideia de que a criança nasce sem gênero e, no decorrer da vida, vai se conhecendo e escolhe que caminho quer traçar, simplesmente é uma farsa. Não cabe à escola tratar do assunto. É direito dos pais, e essa é a nossa revolta", diz.
"Sabemos que dentro dessas escolas existem ótimos professores, compromissados com o ensino, mas também existem inúmeros militantes, que fazem uma engenharia social com as crianças, abrindo brechas para que elas experimentem determinadas coisas prematuramente, a ponto, por exemplo, de escolherem um nome social sem autorização dos pais", diz o vereador. Segundo ele, movimentos religiosos e outras organizações conservadoras se mobilizam para protestar no plenário da Câmara e tentar barrar o PL.
A proposta também foi alvo de críticas do deputado federal fluminense Carlos Jordy (PSL-RJ). "Essas pessoas querem fazer com que o mundo deles se torne o da sociedade. Que sua realidade seja reproduzida para os demais. Todo mundo pode ser feliz, mas não queiram empurrar goela abaixo das pessoas. Esse projeto é 'natimorto'", disse, em vídeo.
Leia a íntegra do Projeto de Lei: