A "hora da chamada" está longe de ser o ritual mais agradável da rotina de um professor. Os alunos se agitam e há quem se levante para conferir se a presença foi mesmo dada. E há também quem não responda. Sua carteira está vazia. À medida que o ano avança, mais e mais nomes vão ganhando "F" ou vão sendo riscados da lista, em especial na rede pública de ensino, onde costumam se perder as histórias de quem não diz mais "presente".
Esse grupo, conhecido como o dos "evadidos", se tornou um mal secreto em meio ao já intranqüilo cenário educacional brasileiro. Dos quase 6 milhões de alunos que ingressam anualmente na 1.a série do ensino fundamental, menos da metade algo próximo de 2,4 milhões vai concluir o ensino médio. De acordo com o Ministério da Educação (MEC), as taxas de repetência até a 5.ª série beiram 50% de todos os que ingressaram na rede de ensino. Essa parcela retida é candidata à evasão ou ao abandono, como os técnicos preferem denominar.
Não importa como se chame esses números imperfeitos são a tragédia da educação no país. O assunto é de tal monta que deveria mobilizar toda a sociedade, do que se entende que não é um problema só da escola. Mas nem a escola consegue lidar com ele. Começa pela terminologia abandono ou evasão? e acaba na metodologia. É praticamente impossível mensurar as perdas de alunos e para quem eles são perdidos a pobreza, o tráfico, a gravidez adolescente, a ausência da família ou o preço do transporte público. "São causas interligadas. Incluindo a falta de professores e a incapacidade da escola de falar aos jovens de hoje", pondera Sônia Haracemiv, do setor de Educação da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Em miúdos, falta rigor no levantamento do dado que pode decidir o futuro do país. Como não existe um mecanismo de controle capaz de levantar todo o histórico dos educandos, simplesmente não se sabe quantas vezes alguém abandonou e retornou à escola, protagonizando crônicas de fracasso, rejeição, inadequação e culpa, como se o êxito dependesse unicamente delas. É fato. Da 1.a série à Educação de Jovens e Adultos, o EJA, milhares de brasileiros viveram uma experiência ruim com aquele que deveria ser o melhor dos mundos a escola.
O assunto tende a mobilizar a sociedade à medida que cresce a preocupação com a violência. Por vias tortas, a escola ainda é vista como dispositivo de segurança. Mas há quem trate a questão com braço forte. Clayton Maranhão, promotor de Justiça do Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Educação, briga por políticas públicas para a família. O consenso entre educadores é que a valorização da escola ainda passa pelos pais com os quais estaria a chave do segredo para conter o abandono. Marcela Marinho Rodrigues, promotora do Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente, pega carona com Maranhão e sugere um intensivo nas escolas já que é ali que o abandono se consolida. "Temos de trabalhar pela reinclusão", proclama, de olho nas levas que todos os anos rompem com o sistema de ensino e vão estar fora de forma na hora de voltar. Numa espécie de síntese, a secretária municipal de Educação de Curitiba, Eleonora Fruet, fala em "fator escola." "É uma determinante. Nem sempre a educação é significativa para os pais. Estou convencida que pesa no resultado. Por isso precisamos atuar em rede. A escola não vai dar conta de tudo."
Com bases em dados fornecidos pela Secretaria Municipal de Educação, Secretaria de Estado da Educação e Ministério da Educação chega-se a um balanço parcial do quadro de abandono na capital e no Paraná. A rede municipal de ensino, por exemplo, atende 105 mil crianças. O abandono foi na casa dos 0,79% em 2006, o equivalente a 776 alunos/ano, principalmente os de 1.ª a 4.ª série. Há uma década, essa taxa era 3,13%.
Eleonora Fruet festeja a redução, mas reconhece que os números ainda preocupam. Não é difícil entender o porquê: basta fazer a conta do que representam 700 abandonos em cinco anos. São 3,5 mil piás e gurias, a maior parte deles em zona de invasão, onde um verdadeiro êxodo urbano se forma. Na rede pública estadual, idem: o abandono atinge mais de 80 mil estudantes ano. Com o agravante de que a clientela é adolescente e tem os dois pés naquela faixa de risco em que podem surgir experiências com drogas e marginalidade.
Assim como a prefeitura de Curitiba, o estado tem comemorado alguns índices. Ano passado, o Paraná foi a única federação que não perdeu alunos. E o melhor teve um acréscimo de 12 mil vagas. Mesmo assim, a evasão ronda as instituições, atingindo a cifra de 15%. São 62 mil alunos anualmente sumindo do mapa escolar. A Secretaria de Estado da Educação calcula ainda que 26 mil pequenos de 7 a 14 anos estejam fora do sistema, evidenciando também a falha dos municípios na hora de cumprir a sua parte. A soma sobe para 80 mil é digna de pânico.
Seria injusto dizer que os professores não se importam com isso. Franco-atiradores à parte, é da cultura educacional correr atrás e saber o que levou aquele nome a levar tantos "efes" na lista de chamada. Mas há um agravante. Faz parte da nau dos evadidos pertencer a uma tripulação com a qual a escola ainda não aprendeu a lidar: a das crianças com problemas sociais, familiares, com drogadição, déficit de atenção e mesmo que estejam cumprindo medidas socioeducativas prescritas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA. Dá curto-circuito.
O argumento corrente é que falta preparo docente para lidar com essas situações, até porque quem trabalha na rede pública costuma ter problemas a granel a resolver. A mentalidade, contudo, é que o tempo das desculpas já se esgotou. A escola vai ter de enfrentar a evasão, caso queira continuar existindo. Alguns sinais de que isso é possível estão sendo dados. Há programas de controle, como a "Fica", iniciativas de contraturno, a parceria com o Ministério Público, mas também uma voz que pede a palavra a do professor. Não, ele não pede silêncio para terminar a chamada. Ele avisa que precisa de ajuda para cumprir sua lição de casa. E professor a gente escuta.
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