Ao ler os jornais do dia, a economista Maria Cristina Magalhães, 47 anos, vai religiosamente à seção de falecimentos. É seu ritual secreto. Vez ou outra, encontra o nome de algum conhecido. Quase sempre identifica um jovem na lista, tal e qual Thiago, seu filho de 17 anos, morto num acidente de automóvel ao lado de mais três amigos. Lamenta. "Desde que ele se foi, parece que nada mudou", diz. O episódio, ocorrido em 21 de setembro de 2002, abalou Curitiba. Thiago Magalhães, Jacques Bordin, Rafael Ferrari e Rodrigo Arruda eram terceiranistas do Colégio Santa Maria e se chocaram contra um poste na Avenida João Gualberto, numa noite de sexta-feira. O veículo pegou fogo.
O caso acabou na Justiça, na qual correm dois processos surgidos dos desacertos entre as famílias que tiveram seus filhos envolvidos na tragédia. Em quatro anos, houve uma única audiência. Enquanto isso, no dia do aniversário do adolescente, os Magalhães fazem festa numa creche e reúnem a turminha do "Santa", hoje na faculdade, para que Thiago não seja esquecido. "A sociedade cobra da gente a educação dos filhos e os impostos, a imprensa acompanha, fala em bebida, drogas, velocidade, e depois? E nós? Os meninos perderam a vida. Eu me sinto sem uma resposta para o que aconteceu", diz a mãe.
A angústia de Maria Cristina é uma espécie de mínimo múltiplo comum que atinge um número incalculável de brasileiros. Estima-se 30 mil mortos no trânsito a cada ano no país. Apenas em Curitiba, ano passado, foram 632 homicídios em acidentes de carro. Multiplicados pelos anos e décadas em que se repetem, esses números fazem crer que é raro haver na população alguém que não conheça a história de pelo menos uma vítima fatal. A morte no trânsito virou parte das causas irremediáveis, assim como um dia foi a varíola, a lepra ou a tuberculose.
É senso comum que esses crimes ficam impunes. A prisão de alguém que tenha bebido, excedido na velocidade e matado é tão crível quanto o pouso de um disco voador, à luz do dia, na Praça Santos Andrade. A punição para quem comete delitos graves e gravíssimos ao volante são acordos monetários, fianças, penas alternativas, cumpridas quase sempre sem vigilância nem visibilidade, agravando a sensação geral da nação de que ao volante, vale tudo. Os homens da lei discordam. Penas, sejam elas alternativas ou brandas como palmadas na bunda, não importa, existem e são aviadas mais rapidamente do que a média nacional, ainda que não botem ninguém atrás das grades. O problema é julgar crimes cuja arma não tem gatilho, mas uma lataria que, de tão poderosa, parece ter vontade própria, ultrapassando o controle do condutor.
Sem pudor
A reportagem falou com três autoridades que lidam com delitos de trânsito o delegado Armando Braga de Moraes Neto, 43 anos, e os juízes Rogério Ribas, 38 anos, e Rogério Etzel, 40 anos. A eles cabe não só avaliar os processos que formam pirâmides nas mesas de trabalho, mas também se indignar o que fazem sem pudores. Ribas, juiz da 2.ª Vara de Delitos de Trânsito, chegou a mandar para um senador em Brasília um pedido de mudança no tempo das penas, sem sucesso. Braga, um dos delegados da Delegacia de Delitos de Trânsito (Dedetran), anda às voltas com a criação de um grupo de apoio às vítimas e batalha para que haja mais flagrantes nos acidentes, melhorando o levantamento de provas. Etzel, juiz do Tribunal do Júri, espanta-se com a quantidade irrisória de casos graves que são reenquadrados no Código de Direito Penal e vão a júri. Foram apenas três em meio aos 280 julgamentos dos quais participou nos últimos quatro anos.
Aos argumentos. A rigor, ninguém tira o carro da garagem com a intenção de matar, mesmo quando incorreu na trilogia sinistra: imperícia, negligência e imprudência. Acidentes de automóvel, por isso, carregam uma enorme dose de fatalidade uma fatalidade que não poupa ninguém, dos motoristas embriagados àqueles que não tiveram sorte ao virar a esquina. Essa margem de erro, de acaso e de azar costuma intimidar juízes e até mesmo as vítimas e os seus. O período das lágrimas é atropelado pela banalidade e vira silêncio. É a pena a que estão condenados. Acidentes com óbitos acontecem todos os dias, fazem parte das estatísticas matinais das rádios e dos plantões de final de semana nos jornais. Viraram um índice urbano, equiparado à meteorologia, balanço de furtos e roubos ou engarrafamentos.
Outro fator que ameniza as condenações é a situação de penúria do sistema prisional brasileiro. Juristas rejeitam a idéia de jogar numa cela comum um universitário que atropelou uma criança ou um profissional liberal que pisou demais no acelerador e bailou na curva. Motoristas, a rigor, não ocupam a mesma escala dos traficantes, homicidas, assaltantes ou estupradores. Além disso, há a punição implícita: ter sido responsável pela morte de alguém já parece castigo maior do que estar atrás das grades. "O objetivo da prisão é ressocializar. Mas o criminoso do trânsito tem outro perfil. Será que precisa ir para a cadeia? A pena alternativa é uma maneira de alcançar o mesmo objetivo", comenta o professor de Direito do Trânsito, Marcelo Araújo.
Crime sem valor
"Como diz a rapaziada, morte de trânsito não dá nada", parodia o advogado Gilberto Gaeski, 47 anos. Na manhã do Ano-Novo de 2004, a filha de 16 anos de Gaeski, Bruna, foi atropelada e morta numa calçada, na frente de uma padaria, em Piçarras, Santa Catarina. Para o homem que na juventude tinha sido escrivão de Polícia de Trânsito, tudo aquilo parecia uma brincadeira de mau gosto.
Mas a experiência do passado lhe valeu. Do pânico, Gaeski passou para a ação imediata, recolhendo provas sobre o delito. Montou o processo da morte de Bruna em 30 dias. Chegou a espalhar faixas por Piçarras em busca de testemunhas do acidente. Meses depois, fundou o Instituto de Cidadania e Justiça Dias Melhores, ONG que dá orientação jurídica a vítimas do trânsito. É onde quebra pedras, já que vê de perto a impotência que toma conta de cada um dos 30 casos que acompanha atualmente.
A legislação é uma camisa-de-força e Gaeski sabe disso melhor que ninguém. Ele, por exemplo, deseja ver condenada a seis anos de prisão a motorista que atropelou sua filha, mas sabe que no máximo ela vai ser levada ao Tribunal do Júri e cumprir penas alternativas. "Só vamos mudar essa realidade com sanções mais rígidas. Vivemos à espera da tragédia mais próxima. Não vemos ninguém sendo punido. A sociedade está voltada para a defesa do patrimônio. Se assaltarem agora um posto de gasolina, a PM toda será mobilizada. Uma batida de automóvel com vítimas não recebe a mesma atenção", protesta.
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