Casas pequeninas

Confira década a década que política de habitação popular vigorou no país:

Anos 40/50 – Abrigo temporário: modelo de "grandes hospedarias" para os sem-teto vingou em meados do século 20, mas logo se mostrou incapaz de prover moradia para toda a população necessitada.

Anos 60 – Conjunto habita­cional: com a criação do BNH e das Cohabs população favelizada é transferida para bairros distantes e pouco urbanizados. Falta de ligação com a cidade e com o mundo do trabalho fadou modelo ao insucesso – ao menos no primeiro momento. Um dos destaques nacionais é a Vila Nossa Senhora da Luz, na CIC.

Início anos 70 – Desfavelização com reassentamento e relocação: em paralelo às chamadas Cohabs, a década foi marcada pela erradicação de favelas e transferência de moradores para áreas urbanizadas. Projeto habitacional dessa monta varreu do mapa a favela do Capanema, onde está hoje o Jardim Botânico e a Fiep. Casa embrião e autoconstrução: descontentamento com imóveis pequenos faz surgir modelo mais ágil. Morador recebe parte da casa, com potencial para ampliá-la. Regime de mutirão fez avançar programa e gerava até 3 empregos por moradia. Comunidades erguiam casas maiores e mais baratas. Pressão de empreiteiras inviabilizou programa.

Meados anos 70 – Bairro popular: tido como melhor momento da política habitacional brasileira, criava bairros inteiros, para moradores de várias rendas e diversos modelos de habitação. Havia espaço para comércio e conexão com zonas industriais.

Anos 80 – Regularização fundiária: com o fim dos financiamentos federais, optou-se por desapropriações de áreas particulares, compra de terras e financiamento para os moradores. Projeto originado do carioca "favela-bairro" respeita vínculos, ameniza conflito, mas corre o risco de manter moradores em áreas perigosas. Exemplo mais bem-sucedido é a Vila das Torres.

Anos 90 e 2000 – Modelo misto: redução de áreas para construção de bairros populares não permite uso de um único modelo. Todos se mesclam – do reassentamento à erradicação à moda Capanema.

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Pequenas histórias do fim do mundo

Nas últimas duas semanas, a reportagem da Gazeta do Povo percorreu CIC, Boqueirão, Santa Quitéria e Cajuru em busca de antigos moradores de ex-favelas – em especial a do Capanema, que em meados da década de 1970 abrigava 700 famílias. Os relatos, em resumo, são verdadeiros elogios à casa própria, antecedidos de crônicas bem brasileiras

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Ele viu a favela desaparecer

Lóris Guesse, 62 anos, poderia frequentar o rol dos homens de pijamas, mas não há como. É aposentado da Companhia de Habitação (Cohab), onde atuou como diretor técnico, e do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Livre das obrigações com o relógio-ponto, passou a dividir sua larga experiência com alunos de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).

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Déficit de casas e de urbanidade

A arquiteta e urbanista Cristina de Araújo Lima fala de favelas com intimidade. Parte de suas pesquisas na UFPR, onde leciona, foram desenvolvidas em áreas como a Vila Zumbi dos Palmares, em Colombo, e no populoso Guarituba, no município de Piraquara, bairro de 50 mil moradores e onde está boa parte dos mananciais que abastecem Curitiba.

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Estima-se que a cada ano Curitiba receba 3,4 milhões de turistas – uma proeza para a cidade que em meados do século passado era alvo de achincalhes até de seus próprios moradores. Hoje, é provável que até os "adeptos" da piada de que "ritiba" vem do guarani "do mundo" reconheçam que existe o que ver e fazer por aqui.

Para quem vem de fora, as escolhas passam forçosamente pelo Jardim Botânico, parque de 245 mil metros quadrados que se tornou o cartão-postal da capital. Dados da prefeitura informam que cerca de 40% dos usuários da Linha Turismo descem ali. Quem olha a estufa, os jardins inspirados em Versalhes e a picada de mata mal imagina que naqueles rincões, entre os anos 1950 e meados dos 1970 ficava a maior ocupação irregular de Curitiba – a Favela do Capanema, então com 700 famílias, cerca de 3 mil pessoas, o equivalente a 30% de toda a população sem-teto da cidade.

Além de imensa, a área seguia à risca as regras da informalidade: os barracos eram divididos em pe­­­­quenos feudos dominados por atravessadores e comerciantes de taperas, o que exigiu pendores di­­­­plomáticos – e ditatoriais – dos téc­­­­­nicos da Companhia de Habi­­­tação (Cohab). Entre 1976 e 1977, uma engenhosa operação de desfavelamento tirou o aglomerado do mapa, servindo de modelo para outras ações.

O projeto distribuiu a população por uma dezena de terrenos em bairros como o Cajuru, Boquei­­­rão e Uberaba. Só não cumpriu o previsto 100% porque os moradores de uma das vilinhas do Capa­­­nema não embarcou nos caminhões – os da Vila Pinto, situada mais abaixo. E porque o nome Capa­­­­nema, mesmo sem os casebres, ficou marcado. O estigma que pairava sobre o bairro era tamanho que, em 1992, um plebiscito popular aposentou o nome nos livros de História. A própria Pinto seguiu atrás, sendo rebatizada como Vila das Torres.

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À época, a distância entre o Capanema e a Pinto era algo como 40 passos, a largura da Avenida das Torres. Hoje, uma e outra simbolizam duas eras geológicas dos programas habitacionais. Estudá-las pode ser a chave para entender por que o direito à moradia é um dos fossos da vida brasileira.

A Torres se tornou uma "favela urbanizada" – resultado de uma política da década de 1980 em que os vínculos dos moradores com a área ocupada são respeitados, mantendo-os no lugar em que estão. O Capanema – a favela que virou parque – pertence à época em que os pobres eram levados para outras divisas longínquas e carentes de infraestrutura.

Lá se vão 35 anos do fim do Ca­­­pa­­­nema, tempo suficiente para per­­­guntar se o desfavelamento mais radical da cidade deixou alguma lição. A pergunta foi feita a estudiosos e a antigos moradores. O silêncio foi a resposta. Trata-se de uma daquelas questões dignas de um simpósio. Em meados da década de 1970, Curitiba tinha 38 áreas de ocupação, com 16 mil moradores. Hoje, de acordo com a Cohab, são 254 áreas, onde vivem 53.962 famílias, 207 mil pessoas. Entre o Capanema e os bolsões de agora há um mar de políticas mais ou menos equivocadas.

Respostas

Mas há quem arrisque uma resposta. A arquiteta e urbanista Cris­­­tina de Araújo Lima, da Uni­­versidade Federal do Paraná (leia página ao lado), defende que ape­­­sar dos ganhos do Jardim Bo­­­tânico, a população poderia ter permanecido lá, debaixo de bons programas sociais, já que não se tratava de uma área de risco.

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O também arquiteto Lóris Guesse – do corpo técnico da Cohab na época da "operação" – não se contém. "O Capanema era uma favela de filme". No início, foi contra o desmanche, mas logo percebeu o lado positivo. "Pode ter sido a primeira vez que uma Cohab recolocou tanta gente em uma dezena de áreas urbanas, integrando-as a outros bairros. Não criamos guetos nem zonas problemáticas. Nossa postura estaria hoje de acordo com o Estatuto da Cidade", opina.

Os pesquisadores reforçam que o estudo das mentalidades habitacionais do passado pode ajudar a entender os destinos tomados pelas metrópoles. Curitiba, por exemplo, resiste à habitação social em áreas urbanizadas centrais, mostrando-se fiel ao "espírito do Capanema". A retomada de investimentos federais, na esteira do Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC, deve mexer com esses conceitos. Afinal, esgotaram-se as áreas para reassentamento e não há mais dinheiro público para criar vilas artificiais. É preciso ser criativo.

Vale fazer cálculos: em 2012, quando forem encerrados os programas Minha Casa, Minha Vida e Morar em Curitiba, 6.098 famílias da capital terão sido atendidas. É bastante. Mesmo assim, ainda restarão outras 1.828 famílias à espera de casa, terreno ou regularização. Por ironia, mais ou menos o número de gente que vivia no Velho Capanema. Eis uma conta e uma história que não acaba.