Uma mão feminina desembrulha uma caixa com potes de massinha da marca Play-Doh e mostra os detalhes das peças que vêm junto com o brinquedo. Uma mulher com voz infantil dá sugestões de como as crianças podem se divertir com os produtos, usando a massinha para moldar vestidos para bonecas de plástico, por exemplo. O vídeo está no Youtube, em um dos milhares de canais de “unboxing” (algo como “tirar da caixa”), modalidade que virou febre na internet e recebe críticas por funcionar como “publicidade disfarçada” e estimular o consumismo na infância.
Confira os limites impostos pela legislação à publicidade infantil
Desde 2014, uma resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), ligado à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência, considera abusiva toda publicidade direcionada a crianças. Segundo o advogado Guilherme Perisse, a resolução apenas interpreta a legislação existente, já que a prática é vedada pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC) – em seu artigo 37, o CDC diz ser abusiva a publicidade que “se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança”.
Perisse atua no Instituto Alana, organização sem fins lucrativos que defende os direitos da criança. Para ele, além de desrespeitarem a resolução do Conanda, os vídeos “unboxing” violam o artigo 36 do CDC, que impõe que a publicidade deve ser veiculada de forma a permitir a fácil e imediata identificação de sua natureza. Na avaliação do advogado, isso não ocorre nesses vídeos do Youtube, que se apresentam como uma mera demonstração de produtos, camuflando o caráter comercial.
A empresária Ana Cláudia Prado Bana, de 35 anos, conta que a filha Valentina, hoje com 4 anos, navega pelo Youtube desde os 2. Na época, a empresária selecionava vídeos de música da Galinha Pintadinha e entregava o tablet para a filha, que descobriu sozinha o “unboxing” de brinquedos. A explicação pode estar na forma de funcionamento do Youtube: ao fim de um vídeo, o próprio aplicativo direciona para outro ou sugere canais. “O Youtube é feito de forma que o usuário permaneça no aplicativo, a criança vai clicando no que aparecer”, alerta Perisse.
Ana Cláudia diz que há poucos dias foi surpreendida por um pedido de compra inspirado nos vídeos. “Faltando 4 meses para o aniversário da minha filha, ela está pedindo a casa da Barbie, brinquedo que tem a ver com os vídeos que está vendo”, conta a empresária, que também é mãe de Vicente, de 6 anos. Apesar da influência dos vídeos, Ana Cláudia considera que o apelo é maior nos canais infantis de tevê a cabo e conta que consegue educar os filhos para o consumo consciente. “Minha filha não é consumista, meu filho (que não gosta de Youtube) é mais. A Valentina entende que só vai ganhar brinquedos em certas datas”, afirma.
“Conteúdos são prejudiciais”, afirma Conselho Federal de Psicologia
Apesar de o Youtube ter classificação etária de 18 anos, o site de compartilhamento de vídeos abriga canais de “unboxing” direcionados até para bebês e crianças em idade pré-escolar. Em sua apresentação, o Disney Baby Toys Parque de Brinquedos informa que é esse o seu público-alvo. Segundo levantamento de 2015 do ESPM Media Lab, que buscou mapear o comportamento infantil no Youtube, dos dez canais infantis mais populares entre crianças de até 2 anos, quatro utilizam esse tipo de narrativa.
O debate sobre os efeitos dos “vídeos de abrir brinquedos” se tornou particularmente importante nos últimos anos, quando a internet virou um dos principais meios de consumo de conteúdos pelas crianças. Para o Conselho Federal de Psicologia (CFP), a publicidade infantil é prejudicial. Segundo o vice-presidente do CFP, Rogério Oliveira, esse público não consegue identificar apelos comerciais, capacidade que se torna ainda mais difícil quando a publicidade aparece de forma implícita, dentro do que seria um vídeo de entretenimento. “A criança é mais suscetível à indução”, diz Oliveira.
Mãe de um menino de 2 anos, Isabela Ferreira Sperandio não frequenta shoppings e não vai a lojas de brinquedos com o filho. A preocupação se estende aos vídeos que a criança assiste pela internet. Mesmo assim, ela conta que teve problemas com o “unboxing”. “Você coloca um vídeo, vai à cozinha e quando volta a criança está vendo outra coisa”, afirma. Embora o Youtube permita ativar um filtro de segurança, com o bloqueio de conteúdos, Isabela conta que é muito difícil impedir o aparecimento dos vídeos. “Todos os dias há pessoas subindo conteúdos novos. Você filtra um vídeo e no outro dia tem um novo”, afirma.
A reportagem procurou a Associação Brasileira de Anunciantes e a Associação Brasileira de Agências de Publicidade, mas até o fechamento dessa edição as assessorias de imprensa das duas entidades não haviam encontrado quem falasse sobre o assunto.
Limites
Entenda o que prevê a Resolução 163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
Art. 2.º Considera-se abusiva, em razão da política nacional de atendimento da criança e do adolescente, a prática do direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança, com a intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço e utilizando-se, dentre outros, dos seguintes aspectos:
I - linguagem infantil, efeitos especiais e excesso de cores;
II - trilhas sonoras de músicas infantis ou cantadas por vozes de criança;
III - representação de criança;
IV - pessoas ou celebridades com apelo ao público infantil;
V - personagens ou apresentadores infantis;
VI - desenho animado ou de animação;
VII - bonecos ou similares;
VIII - promoção com distribuição de prêmios ou de brindes colecionáveis ou com apelos ao público infantil; e
IX - promoção com competições ou jogos com apelo ao público infantil.
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