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Urbanismo

Vilas são lembradas, logo existem

Pesquisa eleitoral |
Pesquisa eleitoral (Foto: )

Tem morador de Curitiba que vive em pé-de-guerra com as placas da rua. Onde está escrito Novo Mundo, ele teima que é Vila Leão. Onde consta Cajuru, acha um desaforo e avisa que ali fica o Centenário. No alto do poste diz Bacacheri – mas garante que todo mundo na área sabe que o trecho se chama América há nada menos do que 80 anos. É fácil explicar: as vilas sumiram do mapa da prefeitura há pouco mais de três décadas, quando foram delimitados os atuais 75 bairros da capital, mas sobreviveram na boca do povo. Eis a questão.

O "extermínio" ocorreu em 1975. Como havia mais vilinhas do que estrelas no céu, o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc) fez uma operação enxuga. Do jeito que estava, não tinha como administrar nem uma aldeia, que dirá uma cidade de mais de 600 mil habitantes, cuja taxa de crescimento ultrapassava 5% ao ano e ainda olhava assustada para o inchaço populacional da década anterior. Só que houve uma "falha no sistema". A turma que trabalhava no instituto na década de 70 ultrapassou o sinal ao fazer a atual divisão – a população não foi consultada sobre as mudanças e até hoje tem quem jure pela avó mortinha que mora no Itamarati – o que fica no Xaxim – e não abra mão do endereço.

A permanência informal das vilas podia não passar de mania de gente antiga. Mas o fato é que ainda embanana os técnicos da prefeitura e é de levar à loucura até recenseador do IBGE e seus métodos infalíveis. Basta uma conversa corriqueira nas ruas para se deparar com os desacertos entre o nome oficial e o nome de guerra.

Para o historiador Marcelo Sutil, responsável por boletins da Casa da Memória sobre os bairros Fazendinha, Pinheirinho, Boqueirão e Bigorrilho, é fácil explicar por que certos nomes desafiam o poder municipal: "Foram-se as vilas, mas ficaram as linhas de ônibus que levavam até elas". É o caso de itinerários como o Carmela Dutra, Centenário, Cotolengo, Formosa, Esmeralda e Rosinha – todas vilas. "O São João, por exemplo, é um alimentador. E não adianta dizer para quem vive no Cotolengo que ali é Campo Comprido. O sistema de transporte acabou mantendo vivas certas áreas", observa Sutil.

Estudo

É tão verdade que o Ippuc convocou o pessoal do Setor de Informação – formado por 60 técnicos, vários especializados em geoprocessamento – para tirar do limbo o traçado das "vilas perdidas de Curitiba". A jornada já dura um ano e o resultado preliminar é de esbugalhar os olhos. Sabe-se agora que a capital do estado é formada por 4,8 mil vilas – quase tanto quanto o número de municípios do Brasil: 5,5 mil.

O cálculo foi concluído graças à papelada dos loteamentos arquivada no Ippuc, dos quais se originou a maior parte das vilas de Curitiba. São um achado, em especial porque não lhes falta o essencial – as ruas exatas onde começavam e acabavam os empreendimentos imobiliários. Recolocadas no mapa, formam um traçado tão maluco que mais parece um daqueles caleidoscópios que a criançada faz nas aulas de Educação Artística. É um desafio à lógica, principalmente na Zona Norte, onde brotava vila feito mato.

Não é de espantar. Houve um tempo em que lançar loteamentos era simples como esquentar pinhão na chapa: alguém tinha uma chacarazinha, via que a cidade estava chegando perto e decidia dividir tudo em terrenos para pôr à venda. A burocracia na prefeitura era tão pequena que se comparada à de hoje em dia, até parece mentira. Aprovado, o conjuntinho ganhava o nome do antigo proprietário ou de alguém a quem ele decidiu homenagear, como o pai ou a mulher. Quem comprava seu minifúndio, logo dizia que morava na Vila Áurea, por exemplo, para citar uma das mais de 40 vilas que formaram aquele que é – com sobra – o território mais galo-de-briga da capital, o Bigorrilho.

É um caso curioso. Fosse pelo tamanho do seu maior loteamento, ia ter o improvável nome de Schimmelpfeng. Venceu a primeira opção – homenagem a um pássaro, para uns; a um mendigo ilustre para outros. O "Champagnat da discórdia" – nome que o mercado imobiliário tentou fazer descer goela abaixo na década de 80 – quem diria, não passa de uma pequena área perto do antigo convento marista. Virou um estudo clássico de área em que apenas uma parte da população concorda com o que está escrito no mapa. "A identificação do cidadão com o bairro é positiva. Ele vai tratar o lugar em que mora como um bem e passa a defendê-lo de forma responsável. Mas essa relação não se resolve com placa no poste", comenta a arquiteta e urbanista Gislene Pereira, da UFPR. A palavra bairro ou vila – observa Gislene – tem de ser entendida no sentido de vizinhança. É auto-explicativo. As pessoas só se apropriam de espaços em que se sentem à vontade. "E isso leva um tempo", acrescenta.

O troca-troca de nomes nem sempre chegou a bom termo. A dita reforma de 1975 mandou para as cucuias a antiqüíssima Vila dos Funcionários, cujos registros remontam a 1855, hoje engolida pelo bairro do Cabral. Idem para a Vila Nossa Senhora da Luz. A terceira Cohab do Brasil tem 40 anos nas costas e é com folga a dotada de projeto mais arrojado entre as pioneiras. Mas virou um elo perdido em meio às 80 vilas que formam a CIC – um gigante de 170 mil habitantes.

O que muda tudo é que os bairros – nascidos para facilitar a administração pública – viraram lugares grandes demais, com carros demais e pracinhas e vizinhos de menos. Há casos em que os moradores sequer se identificam com a área a que pertencem, em especial nas divisas, como acontece nas cercanias da Água Verde com o Seminário. Esse desconforto urbano tende a virar terreno fértil para discutir o alegre retorno das vilas.

Vale lembrar que até pouco tempo a palavra "vila" não figurava na lista das dez mais. Dos bairros de Curitiba, apenas um – a Vila Isabel – o manteve, contra tudo e todos. Os outros remanescentes viraram Hauer, Lindóia, Guaíra, Fanny ou Tingüi, provavelmente por causa do sentido pejorativo que a palavra ainda carrega. "A população costuma não gostar de dizer que mora na vila. Vila é como se fosse um estágio inicial do loteamento, uma situação que não se realizou. Mas costuma funcionar quando se quer invocar a aura bucólica de outros tempos", observa Gislene Pereira.

Tudo indica que a aura quase romântica das vilas de antigamente está sendo resgatada das trevas, ainda que seja impossível trazer algumas delas de volta. O próprio Ippuc diz não saber muito bem o que fazer com o traçado maluco dos antigos loteamentos. Planeja inserções nos bairros e conversas com os moradores. No mais, é ver o que vai dar – o que traduzido significa que vai depender do interesse da população. "Nosso esforço é entender como muitos moradores denominam o lugar onde moram. É uma questão cultural. De qualquer modo, reabilitar a vila é melhorar a administração do bairro", comenta o economista Lourival Peyerl, 51 anos, coordenador de informação do Ippuc.

Apesar da ausência de finalidade imediata, a idéia empolga, principalmente urbanistas em busca de soluções para que as grandes cidades não se tornem um amontoado de gente que não se conhece. Para essa doença, a vila tem o efeito de um remédio caseiro. Com muito pouco – uma palavrinha – pode mexer com memórias sobre lugares um dia chamados de Vila Feliz – hoje cortada pela Rápida e uma vaga lembrança; o mesmo se diga das "vilas irmãs" – Guilhermina e Fanny. Falar nisso pode parecer retrô, bairrismo ou pura falta de ter o que fazer. Por isso mesmo, essa conversa vai ser mesmo das boas.

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