As crianças da América Latina e do Caribe convivem com um problema criado no ambiente onde deveriam estar mais protegidas: a família. De acordo com o diretor regional do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) para a América Latina e Caribe, Nils Arne Kastberg, combater a violência intrafamiliar é uma das medidas mais urgentes para melhorar a situação da infância na região. "Há muito incesto, abuso sexual, falta de proteção das meninas e, em algumas áreas, os maus-tratos sistemáticos", afirma. Kastberg conversou com a Gazeta do Povo durante um evento sobre infância organizado pela Pastoral da Criança, em Curitiba.

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Qual o quadro mais urgente a ser mudado na América Latina?

Em média, 43% da população latino-americana vive abaixo da linha de pobreza. Entre os menores de 18 anos, esse índice fica entre 57% e 59%. Acredito que os níveis de discriminação e pobreza das comunidades indígenas e afrodescendentes, que juntas representam um terço da população, são talvez a chaga mais aberta que temos na América Latina neste momento. Nestes povos, principalmente, continuamos com muitos altos níveis de desnutrição crônica. A média na região é de 16%. É o tipo de desnutrição que já começa durante a gestação, ligado a uma mãe adolescente, anêmica, assustada e violada, contribuindo para um círculo negativo vicioso que atinge também seus filhos. Há outros temas que estão surgindo e são muito importantes. Quase não se falava tanto do alto nível de violência intrafamiliar. Há muito incesto, abuso sexual, falta de proteção das meninas e, em algumas zonas, os maus-tratos sistêmicos, o castigo corporal. Batem e castigam, em vez de educar.

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Essa violência é cultural?

Sim, especialmente nos países do Caribe Anglo-Saxão, onde temos os mais altos níveis de castigo corporal. Até nas escolas se castigam as crianças. Isso é um passaporte para a aprovação de métodos violentos. Em vez de ensinar uma criança a ser pacífica, estão legitimando a violência. Depois os adultos se surpreendem que existam adolescentes violentos. Esses altos níveis de violência intrafamiliar se refletem na rua, porque muitas crianças, quando chegam à adolescência, fogem, preferem viver os maus-tratos na rua que os maus- tratos da família.

O que fazer para mudar esta realidade?

É preciso trabalhar os valores familiares e a educação, mas o primeiro passo é falar do tema. Quando eu falo sobre violência familiar muitos meios de comunicação não publicam e o silêncio leva à impunidade. É muito importante dar garantias às crianças e à mulher para que falem da violência intrafamiliar. Há também a questão da legislação, deficiente em vários países. E, quando as leis são boas, geralmente os policiais não querem interferir porque acham que isso é algo que acontece dentro da família. Se a polícia age, o problema é que a pessoa que maltrata é quem traz o dinheiro para casa. Com o homem preso, a mulher e os filhos ficam sem dinheiro, sem comida. Muitas mulheres se conformam com um contexto de maus-tratos porque não sabem como vão sobreviver economicamente. Por isso, este círculo vicioso de violência intrafamiliar é muito difícil de romper.

Qual seria o segundo passo?

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Deve haver um marco legislativo. Em alguns países, o estupro de uma mulher maior de 18 anos se pune com 15 a 25 anos de prisão, mas, se a vítima tem menos de 18 anos, a pena é de três anos. Temos ainda alguns países da região onde não está penalizado o abuso sexual no entorno da família. O terceiro passo seria fortalecer a mulher. No Peru existe a Defensoria da Mulher, composta por mulheres que têm direito a convocar, por exemplo, o marido de uma mulher que sofre violência para castigá-lo de alguma forma. Não podem colocá-lo na cadeia, mas podem envergonhá-lo publicamente. No Brasil há o Bolsa Família, onde a mulher recebe uma ajuda financeira. Mas o trabalho também deve ser feito com os homens, pois é muito claro que se desenvolveu uma imagem machista, que apóia a imagem de um homem violento.

Quais são os bons resultados alcançados na área da infância?

Nos últimos três anos, temos visto uma tendência positiva. Os países estão escutando a mensagem de que deve haver um maior investimento social para a infância. Em vários países latino-americanos, incluindo o Brasil, a porcentagem de investimento ou foi mantida ou cresceu. Mas ainda é preciso bastante trabalho para se alcançar a utilização mais eficiente dos recursos públicos. É muito importante ver como se utilizam os recursos da saúde e como melhorarmos a qualidade da educação latino-americana. Também noto que os prefeitos estão promovendo políticas em favor da infância. No sertão brasileiro, nove governadores aceitaram dar acompanhamento a cada município dos seus estados para progredir nos temas relacionados à infância. Dentro de um ano vamos dar um prêmio aos municípios que avançaram nestes temas. Na Colômbia, nos reunimos com os governadores para que prestem contas sobre o que eles estão fazendo pela infância. Dois anos atrás, isso não acontecia.

Como a sociedade civil está participando?

Primeiro, há mais movimentos religiosos envolvidos e a Pastoral da Criança é talvez o melhor exemplo de como a Igreja Católica se preocupa com a infância. Outro setor que tem melhorado a atenção à infância é o setor corporativo. Vemos empresas como Itaú, Globo, Petrobras, que têm uma tradição social, agora focando seus esforços nos temas da infância. Esta semana Curitiba foi a capital da infância latino-americana, com diversos eventos sobre o tema (Conferência da Pastoral da Infância, Congresso de Investimento Social Privado, Encontro de Centros de Voluntariado). É muito bom que exista uma maior atenção neste momento por parte do setor privado, da Igreja, das instituições e dos governos.

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