Toda gestante tem direito a uma gravidez saudável, a um parto seguro e a ser atendida com dignidade.| Foto: Kitiele Kiti/Pixabay
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Denúncias e relatos de mulheres que sofreram algum abuso ou violência durante o trabalho de parto estão cada vez mais recorrentes. O recente caso do Rio de Janeiro, em que um anestesista estuprou uma paciente durante uma cesárea, reacendeu a discussão sobre o termo “violência obstétrica”. Médicos rejeitam o uso do termo, já especialistas chamam atenção para os direitos das gestantes na hora do parto.

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A Organização Mundial de Saúde (OMS) reconhece a violência obstétrica como uma “violação dos direitos humanos fundamentais”. No Brasil, ainda não há uma lei federal ou outro tipo de regulamentação nacional que criminalize ou especifique o que configura esse tipo de violência.

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Como a “violência obstétrica” não está especificada em lei como crime, o Ministério da Saúde também não utiliza essa expressão. “Sendo assim, não se pode imputar a uma categoria profissional um delito ou crime, mas a descrição da conduta adotada por um indivíduo, independentemente de sua profissão, podendo ser tipificada como violência ou crime”, disse a pasta à Gazeta do Povo.

Para médicos, termo é inadequado e preconceituoso

A Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) emitiu, no dia 4 de abril deste ano, um posicionamento contrário ao termo “violência obstétrica”. O documento foi reencaminhado em resposta à reportagem da Gazeta do Povo. Segundo a entidade, “trata-se de uma expressão criada com evidente conotação preconceituosa que, sob o falso manto de proteger a parturiente, criminaliza o trabalho de médicos e enfermeiros na nobre e difícil tarefa de atendimento ao parto”.

“O maior erro do conceito de 'violência obstétrica', é tentar transformar em regra a exceção, dando a impressão de que médicos e enfermeiros habitualmente tratam parturientes de modo violento. Nada pode ser mais injusto do que isso. A imensa maioria das pessoas que cuidam e auxiliam mulheres a parir são pessoas dedicadas, corteses e comprometidas com as boas práticas”, explicou a Febrasgo.

Em caso de inadequações de condutas durante o procedimento do parto, a Febrasgo recomenda que seja utilizado o termo “má-prática”, como é usado em outras especialidades médicas. A Federação reforça que “os casos de violência contra a mulher em qualquer situação são inaceitáveis e devem ser denunciados às autoridades competentes para serem avaliados, julgados e punidos os seus responsáveis”.

O Conselho Federal de Medicina (CFM) foi procurado para se manifestar sobre o uso do termo, mas não quis se pronunciar. Apenas explicou o que deve ser feito em casos de denúncias envolvendo a atividade de um médico no exercício da profissão.

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“Pode apresentar sua queixa junto ao Conselho Regional de Medicina do estado onde ocorreu o fato. A partir daí, o CRM pode determinar a abertura de sindicância para investigar a situação apontada. Se confirmados os indícios, o CRM pode  propor a abertura de um processo ético-profissional contra o denunciado. Se condenado, ele fica suscetível a penas previstas em lei que podem chegar à cassação da sua possibilidade de exercer a medicina”, explicou a assessoria do CFM.

Em uma nota divulgada em 2019, o CFM reiterou que o termo violência obstétrica “é inapropriado, devendo ser abolido, pois estigmatiza a prática médica, interferindo de forma deletéria na relação entre médicos e pacientes”.

A Gazeta do Povo entrou em contato com o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp), que recentemente se manifestou sobre violência obstétrica em uma reportagem do The Intercept.  Na reportagem, consta que o Cremesp fez uma reclamação à OAB, por uma advogada estar oferecendo um curso sobre violência obstétrica em São Paulo. O curso, segundo a reportagem, foi apontado pelo Cremesp como uma ofensa aos médicos.

"Expressões como 'violência obstétrica' fragilizam a relação médico-paciente e estigmatizam toda uma classe profissional", informou o Conselho.

Segundo o Cremesp, "atos de violência devem ser encarados e rigorosamente punidos como crimes que são, e não atribuídos à Medicina, que tem como principal objetivo a atenção e o cuidado ao paciente".

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O Secretário de Atenção Primária do Ministério da Saúde, Raphael Câmara, reforçou que existe uma caderneta da gestante com todos os direitos e recomendações para as mulheres em trabalho de parto. Segundo o secretário, o Ministério trabalha para incluir no Sistema Único de Saúde (SUS) estratégias de humanização e acolhimento, além de qualificar profissionais e gestores de saúde na prevenção de qualquer tipo de violência contra a mulher no pré-natal, garantindo-lhe um parto seguro.

“O Ministério da Saúde repudia qualquer tipo de violência sofrida por mulheres em todos os contextos, respeita o direito legítimo das mulheres em usar o termo que melhor represente suas experiências vivenciadas em situações de atenção ao parto e nascimento que configuram maus tratos, desrespeito, abusos e uso de práticas não baseadas em evidências científicas”, complementou a pasta.

A falta de consenso em relação a terminologia é criticada por pesquisadores da Fiocruz. Em um estudo sobre maus-tratos e violência obstétrica, publicado em fevereiro deste ano, algumas pesquisadoras apontaram que a falta de definição dificulta a elaboração de pesquisas e políticas públicas relacionadas à saúde da mulher e do recém-nascido.

Justiça reconhece o termo, mas não há lei específica

No Brasil, ainda não há uma lei específica sobre violência obstétrica. Porém, os atos apontados como violações aos direitos das gestantes e parturientes podem ser enquadrados em crimes já previstos na legislação brasileira, como lesão corporal e importunação sexual, por exemplo. Sem a referência do termo no Código Penal não há prisão para esses casos.

Mesmo não tendo uma lei federal, existem normas estaduais em pelo menos 18 estados e no Distrito Federal que tratam sobre esse tipo de violência ou sobre o parto humanizado. Em alguns, como o Paraná, há o pagamento de uma multa de cerca de R$100 mil em casos de violência obstétrica.

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A advogada Alexandra Moreschi, especialista em Direito Médico e da Saúde, informou que o termo violência obstétrica é utilizado pela OMS e não foi um termo criado no Brasil. Segundo ela, esse é uma expressão adequada que caracteriza o uso intencional de força física, ameaça contra a gestante antes, durante ou após ao parto.

"Apesar dos médicos terem um pouco de dificuldade de aceitar esse termo, eles entendem que cria uma animosidade entre o paciente e o profissional de saúde, é o mais adequado para se designar esse tipo de ato. Não entendo que seja um termo depreciativo, temos dificuldade de entendimento, mas é o termo adequado para o que acontece no momento que é a violência", disse a advogada.

Em 2019, o Ministério Público Federal (MPF) recomendou ao Ministério da Saúde que fosse reconhecido o termo “violência obstétrica”, após a pasta emitir um despacho contrário ao uso do termo. Segundo o MPF, trata-se de uma “expressão já consagrada em documentos científicos, legais e empregada comumente pela sociedade civil e que a expressão pode ser usada por profissionais de saúde, independentemente de outros termos de preferência do Governo Federal”.

Na recomendação com quase 2000 páginas e 40 anexos com relatos de denúncia de violência obstétrica em maternidades e hospitais de todo o país, a procuradora da República Ana Carolina Previtalli cobrou medidas do Ministério para coibir práticas agressivas e maus-tratos.

Neste ano, foi criado pelo Ministério da Saúde o Programa de Humanização do Parto e Nascimento, que tem como objetivo primordial a diminuição dessas práticas de agressão, negligência, violência, desrespeito e entre outras.

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Tipos de violência na hora do parto

Relatos de violência contra parturientes se tornaram frequentes com o uso das redes sociais. Há muitos perfis de mulheres, advogadas e ONGs divulgando abusos contra mulheres em trabalho de parto. Entre as violências relatadas por mulheres estão assédio moral da equipe médica, o uso inadequado do fórceps, episiotomia, a falta de acompanhante durante o parto e até lesões nos recém-nascidos.

Segundo a OMS, são considerados violência obstétrica abusos verbais, restringir a presença de acompanhante, procedimentos médicos não consentidos, violação de privacidade, recusa em administrar analgésicos, violência física, entre outros.

Um relatório das Nações Unidas mostrou que, nos últimos 20 anos, os profissionais de saúde ampliaram o uso de intervenções que antes serviam apenas para evitar riscos ou tratar complicações no parto. De acordo com uma pesquisa da Fundação Perseu Abramo, uma em cada quatro mulheres é vítima de violência obstétrica durante o parto no Brasil.

A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) publicou o levantamento Nascer no Brasil em 2012, cujo dados mostraram que 30% das mulheres atendidas em hospitais privados sofrem violência obstétrica, enquanto no Sistema Único de Saúde (SUS) a taxa é de 45%.

Contrariando o posicionamento do Ministério da Saúde, a Secretaria de Saúde do Mato Grosso do Sul publicou uma cartilha sobre violência obstétrica. A cartilha traz exemplos do que pode ser considerado um ato de violência e o passo a passo para efetuar a denúncia.

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Entre alguns exemplos, a cartilha coloca:

• manobra de Kristeller (pressão sobre a barriga da mulher para empurrar o bebê);

• lavagem intestinal durante o trabalho de parto;

• raspagem dos pelos pubianos;

• amarrar a mulher durante o parto ou impedi-la de se movimentar;

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• não permitir que a mulher escolha sua posição de parto, obrigando-a a parir deitada com a barriga para cima e pernas levantadas;

• impedir a mulher de se alimentar e beber água durante o trabalho de parto;

• negar anestesia, inclusive no parto normal;

• Impedir o contato imediato, pele a pele do bebê com a mãe, após o nascimento sem motivo esclarecido à mulher;

• proibir o acompanhante que é de escolha livre da mulher;

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• cirurgia cesariana desnecessária e sem informar à mulher sobre seus riscos.

Presença de um acompanhante

A proibição da presença do acompanhante é uma das formas mais evidenciadas como violência obstétrica entre as denúncias no Ministério Público. A lei do direito ao acompanhante, em vigor desde 2005, diz que a gestante tem o direito de ser acompanhada por pessoa de sua escolha durante sua permanência no estabelecimento de saúde. Pela lei, quem escolhe o acompanhante é a parturiente e pode ser homem ou mulher, não é necessário que seja o pai da criança.

No caso do estupro do Rio de Janeiro, o Portal G1 noticiou que o marido estava na sala de parto, mas o médico esperou a saída dele com o bebê para praticar o crime. A informação foi revelada após a conclusão do inquérito pela Polícia Civil.

Para denunciar um caso de violência obstétrica, as vítimas podem recorrer às secretarias Municipais, Estaduais ou Distritais, ao Conselho Regional de Medicina (CRM) ou ao Conselho Regional de Enfermagem (Coren). A violência também pode ser relatada por telefone pelos números 180, nos casos de violência contra a mulher, ou 136, caso tenha ocorrido no Sistema Único de Saúde.

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Alexandra reforça que é importante a mulher abrir uma ouvidoria no próprio hospital e fazer uma reclamação formal para que fique formalizado a violência que ocorreu, quem praticou ou o suspeito de ter praticado.

“Após a reclamação e a gestante tendo alta, ela pode fazer registro de uma ocorrência e procurar um advogado especializado para ter reparação de âmbito moral, material ou mesmo estético, a depender do caso concreto”, explica.