Ao infectar fêmeas de camundongos grávidas com o vírus zika, cientistas brasileiros constataram que a doença é capaz de produzir efeitos semelhantes à microcefalia humana nos filhotes.
É a demonstração mais clara até agora de que o vírus provavelmente é uma das causas da epidemia de malformações congênitas no sistema nervoso detectada no país a partir do ano passado.
Os dados estão saindo em artigo na revista científica “Nature”, uma das mais importantes do mundo. Entre os autores do estudo estão Patricia Beltrão-Braga e Jean Pierre Peron, ambos da USP, e Alysson Muotri, da Universidade da Califórnia em San Diego.
Outra contribuição-chave da pesquisa foi revelar que, enquanto fetos de uma das linhagens (grosso modo, “raças”) de camundongos estudadas sofreram alterações cerebrais profundas durante seu desenvolvimento no útero, os filhotes de outra linhagem aparentemente não foram afetados pelo zika.
Tudo indica que não se trata de pura sorte ocorre que a linhagem sem danos detectáveis no cérebro costuma reagir de forma mais eficaz a infecções virais.
Algo parecido pode muito bem estar acontecendo entre seres humanos, o que explicaria, em parte, o fato de que o número de bebês com microcefalia desencadeada pelo zika não é ainda mais calamitoso afinal, a quantidade de grávidas que provavelmente foram infectadas pelo vírus é muito superior à de crianças com problemas neurológicos.
Minicérebros
Além de inocular roedores de laboratório com o zika, os pesquisadores expuseram células humanas que dão origem a neurônios, bem como organoides cerebrais (“minicérebros” cultivados em laboratório, que lembram uma forma rudimentar do órgão), a duas formas do vírus.
Uma delas é a variante africana original do zika, inicialmente isolada em macacos, enquanto a outra foi obtida de um bebê da Paraíba que nasceu com microcefalia.
“A cepa brasileira é muito diferente da africana. Seus efeitos são mais fortes, ela causa mais danos celulares”, declarou Patricia em entrevista coletiva por telefone.
Outro indício dessa diferença veio da comparação dos efeitos dos dois tipos de zika sobre organoides cerebrais de chimpanzés: a cepa africana, provavelmente adaptada a parasitar primatas não humanos, deu-se bem neles, enquanto a cepa brasileira não conseguiu crescer nos organoides derivados de macacos.
A morte generalizada de neurônios e a destruição de organoides cerebrais já tinha sido detectada por estudos anteriores, liderados por Stevens Rehen, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). O grande diferencial do novo estudo foi ver o que acontecia com o organismo dos fetos de camundongos.
Em resumo, o cérebro dos filhotes cresceu menos e de forma errada, com um córtex cerebral (camada mais externa do órgão) 50% mais fino do que o normal. Além disso, o desenvolvimento dos bichos foi afetado em outros aspectos os camundongos nasceram bem menores que o normal.
Para Patricia, tais resultados em camundongos apoiam a ideia de que os efeitos do vírus não se resumem à microcefalia, mas constituem a chamada síndrome congênita do zika, um problema que pode ter vários efeitos diferentes.
“Ainda tínhamos poucos dados experimentais firmes mostrando a relação entre o vírus e esses problemas. Nosso trabalho ajuda a mudar isso”, declarou Muotri.
Ele ressalta ainda que o estudo do comportamento dos “minicérebros” pode ajudar a testar medicamentos antizika, que talvez possam barrar ao menos parte dos danos causados pelo vírus ao órgão de verdade.
Mais peças
Seguindo regras estabelecidas pela comunidade científica internacional, que tem recomendado a divulgação de dados experimentais sobre o zika o mais rápido possível, antes mesmo que eles sejam revisados formalmente, dois outros grupos de pesquisadores brasileiros publicaram na internet versões preliminares de estudos importantes sobre o tema nesta semana.
O grupo da UFRJ, liderado por Rehen, analisou os genes humanos que o zika parece manipular quando infecta as células, verificando que ele atrapalha a transformação de células precursoras em neurônios maduros fator que deve estar ligado ao cérebro menor dos bebês infectados.
Outro estudo, feito por pesquisadores da USP liderados pelo virologista Paolo Zanotto, acompanhou uma mãe de 32 anos de Santos (SP) cujo bebê nasceu com microcefalia. Ocorre que a mãe também tinha sido infectada antes com doenças como dengue, herpes, citomegalovírus e toxoplasmose (as três últimas doenças estão associadas a malformações congênitas).
É possível que a ação dessas doenças, em conjunto com o zika, explique parte da epidemia de microcefalia, uma vez que elas tendem a se espalhar em populações mais pobres, com nutrição deficiente e imunidade mais baixa, como é o caso de áreas muito afetadas no Nordeste.
Mais agressivo
A variedade que circula no Brasil causou muito mais danos do que o tipo africano, que havia sido estudado anteriormente. “Nós observamos que o vírus que está circulando aqui é muito mais agressivo do que a cepa isolada em 1947 na África”, enfatizou a professora doutora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP Patricia Cristina Baleeiro Beltrão Braga sobre os efeitos nos fetos ainda no útero.
Apesar de a microcefalia ser o efeito mais difundido da infecção em bebês ainda não nascidos, Patrícia destaca que o vírus também ataca outros órgãos, afetando o desenvolvimento de diversas partes do corpo: “O que nós temos visto é que existe uma síndrome congênita da infecção pelo Zika vírus”.
O coordenador da Rede Zika Vírus e professor do Departamento de Microbiologia da USP, Paolo Zanotto, exemplifica: “Tem crianças crescem com má formação de membros, tem sobreposição de dedos no pé e nas mãos”. Segundo Zanotto, estão sendo acompanhados diversos casos de crianças que tiveram alterações no desenvolvimento devido ao zika, inclusive, problemas de má formação no cérebro mais discretos do que a microcefalia, que pode ser observada pelo tamanho do crânio.
A extensão dos danos aos embriões está ligada, de acordo com os pesquisadores, ao estágio da gestação em que houve a infecção. Quanto mais cedo houver o ataque pelo vírus, mais drásticos são os efeitos sobre a criança.