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 | RICARDO MORAES/REUTERS
| Foto: RICARDO MORAES/REUTERS

Diante de um vale de lama, a operária Vilma Silva, de 47 anos, tenta apontar a casa do seu Totó, um antigo morador de Bento Rodrigues, distrito de Mariana, cidade histórica de Minas Gerais. O motorista de ônibus Altieres Caetano, de 33 anos, arrisca indicar onde um amigo terminava de fazer uma obra. O ajudante de serviços Jardinau Luciano da Silva, de 54 anos, desiste de achar a própria morada. Em meio à mistura de argila, areia e água, gente que viveu ali por mais de 30 anos perdeu a referência das ruas que conhecia tão intimamente. As vias de asfalto simples no qual as crianças jogavam bola e andavam de bicicleta, as casas térreas de muitas janelas nas quais as vizinhas se apoiavam para conversar, e mesmo o bar de Sandra, ponto de encontro e de biritas dos fins de semana, foram convertidos, em poucos minutos, em massas disformes dos quais se divisam apenas pedaços de construção.

Uma avalanche equivalente ao volume de 10 lagoas Rodrigo de Freitas se abateu sobre o conjunto de cerca de 300 casas e desfigurou não só a arquitetura, mas a vida e a memória de quem morava ali. Do bairro original, onde viviam cerca de 600 pessoas, não restam nem 10% em pé.

“Não tenho mais noção, não”, responde Jardinau ao ser questionado sobre onde morava. “Não tem jeito de ver nada, saí correndo, e quase a água me leva”, continua ele, cobrindo o rosto com a gola da camisa listrada para esconder o choro.

Embora fosse pacata, com suas hortinhas de quintal, a vila, localizada a 124 quilômetros de Belo Horizonte, vivia sob a sombra quase literal de três reservatórios de rejeitos de mineração, instalados acima do nível do vilarejo. Em caso de acidente, como o de anteontem, quando duas barragens se romperam, a gravidade seria inclemente.

“Todo mundo tinha medo de que isso acontecesse, falamos com a empresa várias vezes. E eles ainda queriam construir uma nova barragem. E o medo desse tanto de água por cima da gente?”, questionava Lucimar Maria Silveira Silva, de 42 anos, a merendeira da escola de 170 alunos que foi varrida do mapa.

João Victor Inácio de Paula, de 13 anos, cursava a 6ª série nessa escola e tentava descobrir o valor de X na equação quando a aula de matemática foi interrompida pelos berros da inspetora: “corre, corre, que a barragem estourou!” “Entramos todos no ônibus escolar, o professor também, e subimos no monte mais alto”, lembra.

Pela janela do veículo, João Victor via passar eletrodomésticos, carros, partes de casa, animais, brinquedos e pessoas. O cheiro da tragédia era de barro misturado com soda cáustica. O som, de um helicóptero grande descendo logo ali. As cenas descritas pela dona de casa Geneci Mariana da Silva, de 48 anos, são insólitas: uma senhora boiava em cima de uma cama, um ônibus se acomodava sobre uma casa destruída. O marrom da lama cobria as feições de quem gritava por socorro. Uma mulher que esperava o resgate do filho de 8 anos descrevia horrorizada que só divisava o branco dos olhos de um homem que gritava por ajuda, afundado no lamaçal. A mistura de rejeitos produzia uma massa movediça e tornava hercúlea a tarefa de puxar com uma corda, uma corrente ou pelos braços quem estivesse afundando.

A tragédia chegou quase sem avisar. Quase porque alguns funcionários da empresa que moravam ali tentaram correr até o vilarejo para alertar parentes e amigos de que deveriam fugir.

“Meu irmão me ligou gritando: ‘Uma bomba!’. E a ligação caiu. Achei que ele tivesse sido demitido por causa da crise. Mas depois conseguiu ligar de novo e falou:’“A barragem rompeu’. Eu fiquei louca. Peguei minha menina (a filha Maria Eliza, de 9 anos), e saí correndo e gritando. Quando cheguei na igreja lá no alto, olhei para trás e não tinha mais nada”, relata Patrícia Paula Alves da Silva, de 38 anos, cujo irmão trabalhava para a mineradora.

Com os olhos vermelhos e inchados, o funcionário da Samarco Marcelo José Felício contava na manhã seguinte que saíra da empresa quase 20 minutos antes da tragédia. O patrão lhe disse que “havia algum problema”, para ir “cuidar da família”. Não deu tempo. A lama atingiu a casa de sua mãe, Maria, antes que ele chegasse. Até ontem, Maria não havia sido localizada pelas equipes de resgate.

Felício tinha certeza de que ela estava morta entre os rejeitos das duas barragens rompidas. A prefeitura de Mariana não confirma o desaparecimento da mãe do operário nem a de nenhum outro morador da região.

“Ainda não podemos dizer nada, estamos levantando quem desapareceu”, afirmou o coronel Luiz Henrique Gualberto, comandante do Corpo de Bombeiros.

Até ontem, a equipe dos bombeiros havia resgatado cerca de 500 pessoas que estavam ilhadas na mata que circunda a vila ou nos pontos mais altos da região. Quem se refugiou no que restou de cidade fez fogueiras para se aquecer e compartilhou o pouco que conseguiu. Uma moradora passou a madrugada preparando 15 litros de café e 10 quilos de arroz com salsicha e milho verde. Ninguém lamentou não dormir na madrugada. Era comum ouvir entre os resgatados que a sensação era de alívio porque a tragédia aconteceu de dia, e não enquanto todos descansavam indefesos.

“Se fosse à noite, nós tinha morrido tudo (sic). Mais um bocadinho já ficava enterrado ali na lama mesmo”, diz Maria Irene de Deus, de 75 anos.

Na manhã seguinte, Maria Irene, seu marido, seus amigos e vizinhos foram retirados de ônibus das áreas até então ilhadas graças ao trabalho de retroescavadeiras que tiraram parte da lama que cobria a estrada. Embora sair do lugar fosse assegurar a própria vida, havia muitos moradores que, depois de resgatados, voltavam às cercanias do desastre, onde ainda se aglomeravam ambulâncias, carros da Polícia Militar e da Defesa Civil. Era o caso do motorista Altieres:

“Nem eu sei mais o que estou fazendo aqui. Acho que é por acreditar que ainda tem gente que não foi encontrada aí nessa mata. Não houve resgate noturno. Passaram a noite com dor e frio”, lamentou, por volta das 10h, ainda com o uniforme e os sapatos sociais sujos de lama.

Menina de cinco anos está desaparecida

Um dos casos mais dramáticos é o da pequena Emanuely, de apenas 5 anos. Desesperada, a família divulgou um cartaz de desaparecida com a foto de uma garota risonha. E a tia da menina, Denise Isabel Monteiro, contou que Emanuely sumiu quando o mar de lama tomou o distrito de Bento Rodrigues, na tarde de quinta-feira.

Denise contou que o irmão dela, Wesley, tentou se agarrar aos dois filhos na hora em que “começou a descer o barro”, mas a enxurrada de lama fez com que ele se perdesse de Emanuely e de Nícolas, de 2 anos. Denise diz que o irmão, a cunhada e o sobrinho menor foram resgatados, mas a garota não tinha sido encontrada até ontem à noite.

Ela afirma que Wesley teve fratura no tornozelo e foi operado no Hospital de Santa Bárbara, cidade vizinha a Mariana. A mulher e o filho de Wesley foram encaminhados para o Hospital de Pronto-Socorro João XXIII, em Belo Horizonte.

Denise ainda tem a esperança de que Emanuely seja uma das crianças internadas em hospitais da região. Ela contou que outros parentes também moram em Bento Rodrigues, incluindo a mãe dela, que precisou ser sedada após a tragédia.

“No domingo, foi todo mundo para casa da minha mãe. Parecia que a gente sabia que estava se despedindo do local. Bento acabou.”

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