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Apesar de os advogados de Donald Trump ainda contestarem o resultado do Colégio Eleitoral nas eleições presidenciais americanas, é extremamente improvável que ele consiga reverter a derrota no total de votos: com 5,3 milhões de eleitores a menos, o republicano obteve 47,4% de votos, contra 50,8% de Joe Biden. Não foi uma exceção. Depois de 1988, os republicanos só obtiveram a maioria do voto popular na eleição presidencial apenas uma vez (em 2004, na reeleição de George Bush). Nesse período, as outras duas vitórias do partido conservador (em 2000, também com Bush, e em 2016, com Trump) se deram com uma minoria de eleitores no total.
Muitos analistas apontam para fatores culturais e demográficos que sugerem uma hegemonia do Partido Democrata, mais à esquerda, nas próximas décadas. O lema de que “demografia é destino” parece ter sido comprovado mais uma vez nas últimas eleições.
O fatalismo pode ser exagerado. Na década de 1930, muitos acreditavam que o mundo ocidental caminhava irreversivelmente para regimes coletivistas e antidemocráticos - além do nazismo e do fascismo, e do varguismo no Brasil, os Estados Unidos tinham Franklin Roosevelt, com um plano de governo socializante e que venceu quatro eleições seguidas. Mas a tendência seria revertida nas décadas seguintes. Ainda assim, as estatísticas atuais indicam um futuro preocupante para os conservadores, e a explicação vai muito além do simples apreço ou desgosto por candidatos específicos.
O Partido Democrata, com uma agenda cada vez mais radical, parece pronto para uma hegemonia no Executivo. E, embora os republicanos tenham obtido um resultado melhor do que em 2018 nas eleições para deputados federais (que ocorrem a cada dois anos), eles também foram superados pelos democratas, que mantiveram a maioria das cadeiras na Câmara e, no cômputo geral, obtiveram uma vantagem de aproximadamente 3 milhões de votos.
A matemática é simples: os republicanos costumam ter um desempenho melhor entre os eleitores brancos e entre os mais idosos, mas, por causa da imigração constante, a população branca representa uma parcela cada vez menor do país. E os idosos que chegam ao fim da vida não estão sendo substituídos por novos eleitores republicanos nas partes mais baixas da pirâmide etária.
Nas pesquisas de boca de urna, Trump obteve uma vantagem de 17 pontos percentuais entre os eleitores brancos, mas perdeu nos outros grupos étnicos (negros, latinos e asiáticos). Trump também venceu entre os eleitores com mais de 45 anos, mas foi superado entre os mais jovens. Entre os americanos na faixa dos 18 aos 29 anos, em especial, a diferença foi enorme: Biden teve 24 pontos percentuais de vantagem.
Mas a principal diferença talvez seja, mais do que racial e de faixa etária, no campo dos valores e costumes. Um exemplo: em um levantamento de boca de urna, Trump aparece como o preferido entre os eleitores casados (54%, contra 44% de Biden). Entre os não-casados, Biden derrotou Trump por 57% a 40%. Outra pesquisa constatou que, entre os que vão à igreja semanalmente, 61% votaram em Trump e apenas 41% optaram por Biden. Esses números são um problema para os republicanos, pois o percentual de pessoas casadas tem caído constantemente. O mesmo vale para o percentual daqueles que frequentam a igreja semanalmente. Na verdade, esses dois índices nunca foram tão baixos.
Outros indicadores mostram uma tendência à agenda do Partido Democrata. A opinião pública, em duas décadas, passou de amplamente contrária para amplamente favorável ao casamento gay e à liberação da maconha. Em 2020, o candidato democrata à presidência defendeu que crianças de 8 anos possam passar por um processo de transição de gênero. E a maior parte dos eleitores não pareceu se incomodar.
A própria vitória de Donald Trump nas prévias do Partido Republicano em 2016 pode ser vista como o sinal de uma crise no conservadorismo mais tradicional. Afinal, o presidente está em seu terceiro casamento, é pouco afeito à religião, tem um histórico de doações para políticos democratas e foi dono de cassinos que promoviam shows de striptease.
O partido tinha à disposição nomes de perfil mais ortodoxo, como senador texano Ted Cruz (cristão praticante e filho de um pastor renomado), o neurocirurgião e também evangélico Ben Carson e, por fim, o próprio Mike Pence, ex-governador de Indiana - que depois se tornaria vice de Trump para, dentre outros motivos, cativar a parte do eleitorado que permaneceu mais à direita. O magnata de Nova York atropelou todos eles nas prévias do partido.
Para John Elliott, doutor em História pela Universidade de Columbia, o Partido Republicano precisa consolidar o movimento iniciado por Donald Trump e atrair a classe trabalhadora para suas fileiras. Ele diz que os republicanos do futuro não farão campanhas focadas em temas morais, mas em uma agenda econômica pró-desenvolvimento e em temas como o combate ao crime. “Por um lado, é fato que as pessoas mais jovens estão se tornando mais de esquerda e menos religiosas, mas o que é interessante é que a coalizão de Trump foi organizada primeiramente em torno de temas econômicos”, afirma. Ou seja, para sobreviver politicamente, a pauta conservadora nos temas morais talvez precise pegar carona na agenda econômica nacionalista de Trump.
Como um sinal de um possível reposicionamento do Partido Republicano, o discurso de Trump parece ter ressoado melhor entre os negros e latinos do que candidatos republicanos em anos passados - e melhor do que ele próprio em 2016. Em 2020, segundo as pesquisas de boca de urna, Trump obteve 32% do voto dos latinos (contra 28% em 2016) e 12% do voto dos negros (contra 8% em 2016).
Valores conservadores no Brasil
No Brasil, as tendências demográficas e sociológicas são menos claras. Por exemplo: ao mesmo tempo em que a porcentagem de evangélicos tem aumentado, o número dos que se declaram sem religião também cresce. Também não está claro se o aumento no acesso das pessoas ao nível superior favorece partidos de esquerda ou de direita. O PT possui um apoio significativo entre os menos escolarizados, mas, por outro lado, as universidades estão longe de serem instituições conservadoras.
Outra diferença é que o Brasil não existe o sistema bipartidário americano, em que metade do país governa enquanto a outra metade faz oposição. Aqui, existe uma tendência de interesses diversos se acomodarem.
Em 2010, por exemplo, Dilma Rousseff foi eleita presidente com o apoio de militantes LGBT radicais e de líderes evangélicos, como o então senador Magno Malta.
“O Brasil tem um sistema fragmentado, com um presidencialismo de coalizão, e quem quer que vença as eleições precisa buscar o apoio de grupos diversos para governar”, explica Rodrigo Prando, professor de Ciência Política na Universidade Mackenzie.
John Elliot afirma que, para não correr o risco de passar por um processo semelhante ao dos Estados Unidos nos próximos anos, os conservadores brasileiros precisam reforçar sua mensagem. “Eu diria para não perderam o senso de identidade nacional e não se esquecerem de dialogar com os trabalhadores comuns”, salienta.