Com o fim da pandemia de Covid-19 e o retorno de crianças e adolescentes às escolas, uma situação mais grave do que a defasagem de ensino foi encontrada: as sequelas da violência sexual em parte dos estudantes. Os casos desse tipo de abuso ainda são extremamente subnotificados e acarretam consequências para o desenvolvimento social das pessoas nessa faixa etária.
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“No período de distanciamento social, com as escolas fechadas e as crianças estando em casa, sabíamos que a violência estava aumentando, mas as notificações estavam diminuindo. Agora, tivemos de novo um pico de denúncias porque as crianças voltaram para as escolas. Os casos aumentaram muito, os professores e a rede escolar estão percebendo muito claramente que as crianças estão vindo com essa sequela da violência sexual”, explica o secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), Maurício Cunha.
Em 2021, foram registradas cerca de 100 mil denúncias de violação de direitos contra crianças e adolescentes. Dessas, 18 mil foram de violência sexual. “Se você colocar na lista, ela é a quarta violência mais notificada -- primeiro é a negligência, depois a violência física e, em terceiro lugar, a violência psicológica. Porém, sabemos que a violência sexual é extremamente subnotificada e que este número não é real. Pelo menos, para cada denúncia, tem 20 outros casos não denunciados. É um problema muito alarmante e muito grave”, destaca.
Eva Dengler, gerente de programas e relações empresariais da Childhood Brasil - Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) que atua no enfrentamento do abuso e da exploração sexual contra crianças e adolescentes -, reforça o cenário de alerta dentro da comunidade escolar: “A situação continua bastante invisível e subnotificada, com menos denúncias no período da pandemia. Acreditamos que um dos grandes fatores para isso ocorrer é o fato de que as crianças e adolescentes não estavam indo presencialmente às escolas, não estavam tendo contato com os professores. A escola é o grande espaço de revelação para as crianças buscarem ajuda”, salienta Eva.
Diante deste cenário, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos promove o Maio Laranja, mês de combate ao abuso e à exploração sexual de crianças e adolescentes. Além de ações publicitárias, a pasta entregará planos e manuais para o enfrentamento desta violência. Do outro lado, a Childhood Brasil trabalha com a campanha #CadêOs90, que questiona onde está a maioria dos casos de violência sexual contra menores, que nem chegam a ser denunciados. De acordo com as estimativas, apenas 10% dos casos são levados às autoridades.
Essas ações estão sendo realizadas ao longo do mês e ganham destaque nesta quarta-feira (18), devido ao Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.
Contudo, mesmo com essas iniciativas, o cenário desse tipo de violência segue imperceptível por causa da falta de dados e, em silêncio, acarreta graves consequências no desenvolvimento psicossocial das vítimas.
“Na maioria dos casos de abuso sexual, o agressor é alguém de confiança da criança e da família. Isso é muito grave porque, de fato, é um abuso sexual, de poder, e uma traição de confiança. Isso torna as consequências psicossociais para a criança ainda maiores porque, geralmente, é alguém que deveria estar protegendo a criança, e não faz. É um abuso daquela relação que é desigual, é uma relação de poder. Então, a criança nunca pode ser responsabilizada, ela nunca é responsável, ela sempre é a vítima”, pontua o secretário do MMFDH.
Desafios enfrentados
Segundo Cunha, os principais desafios enfrentados pelas autoridades no combate ao abuso sexual contra menores de idade são a normalização dessa violência e a ocorrência dos casos dentro das próprias famílias. “Precisamos dar segurança para a sociedade, criar um sentido de vigilância social em torno do tema, todos atentos aos sinais identificadores da violência contra a criança. Ela tem que ser protegida por todos, não só pelo poder público”, reforça.
“Uma das grandes dificuldades que enfrentamos é a naturalização da violência, aquela concepção errônea de que isso faz parte do dia a dia das famílias. Em algumas regiões do Brasil, em comunidades indígenas por exemplo, o abuso sexual faz parte da cultura ou da dinâmica familiar. Lembrando que, no Brasil, qualquer ato libidinoso ou conjunção carnal com menor de 14 anos é estupro. Muitas vezes, essa relação é naturalizada a partir dos 10, 11 anos. Não pode, esse é um ponto que temos que combater”, alerta.
“Outro ponto é que 80% ou mais dos casos de abuso sexual são intrafamiliares. Então, fica muito difícil o monitoramento por parte do Estado”, salienta Cunha.
Eva destaca que a resistência da sociedade em discutir educação sexual com os jovens também prejudica o registro desses casos: “A educação sexual é uma premissa para a prevenção. A primeira coisa que precisamos é educar nossas crianças e adolescentes sobre a diferença entre um toque de carinho e amor de um toque abusivo. A Childhood já saiu há muitos anos da vertente daquele modo tradicional da educação sexual, que é o que as famílias têm medo”.
“Por meio dos nossos estudos, utilizamos como teoria básica a autoproteção de crianças e adolescentes, não falando da questão sexual, mas da autoproteção delas mesmas enquanto indivíduo, corpo. Desde a infância consigo orientar as crianças no sentido de que partes do corpo são só delas, que ninguém deve pôr a mão, não levando para o cunho sexual, e sim para o da proteção mesmo”, reforça a representante da organização internacional.
Nas denúncias registradas pela Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos no ano passado, 8.494 casos ocorreram nas residências das vítimas e dos suspeitos - ou seja, ambos moravam juntos. Em cerca de 74% dos casos, a violação foi contra meninas e, em quase 60% dos registros, as vítimas tinham entre 10 e 17 anos.
“Cerca de 94% de todas as denúncias de violência contra a criança são feitas por um adulto, daí a importância desse adulto perceber a violência e fazer a denúncia. Geralmente, é o professor ou um profissional de saúde. Uma denúncia ao Disque 100 não precisa ser comprovada, é uma denúncia. Não tem o ônus da prova para o denunciante. Quem vai fazer a averiguação do crime é a rede de proteção de onde a criança está localizada. Então, na dúvida, denuncie”, reforça Cunha.
Medidas contra a violência
Além da campanha publicitária, o MMFDH entregará ações práticas no combate a esse tipo de abuso, como o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência contra Crianças e Adolescentes, o Pacto da Escuta Protegida e o Observatório da Criança. As duas primeiras medidas são manuais para que estados e municípios possam desenvolver ou aperfeiçoar suas políticas públicas de combate a violência contra menores de idade.
“O Brasil não tinha um plano de enfrentamento para todas as violências, apenas para a violência sexual e, mesmo assim, ele não estava sendo utilizado. Agora vamos lançar um plano que enfrentará as cinco violências: abuso sexual, exploração sexual, violência física, violência psicológica e a violência institucional, que são as violências tipificadas por lei”, destaca Cunha, ao pontuar que a pasta trabalhou no desenvolvimento do plano por mais de um ano.
O Observatório será uma plataforma virtual com informações, pesquisas e políticas públicas voltadas para a violência on-line contra crianças e adolescentes, o que também está no radar do ministério.
A Gazeta do Povo teve acesso com exclusividade ao Plano Nacional de Enfrentamento da Violência contra Crianças e Adolescentes e uma das novidades da iniciativa é a implementação de indicadores, para que as ações dos órgãos públicos consigam ser mensuradas.
Além disso, Cunha pontua que o ministério pretende implementar em escala nacional os Centros de Atendimento Integrado à Criança Vítima de Violência. Esses locais visam integrar o trabalho dos órgãos de proteção aos menores, de forma similar ao que é feito na Casa da Mulher Brasileira, espaços que acolhem mulheres vítimas de violência.
Essas medidas são vistas de forma positiva pela sociedade civil, mas a implementação dela em termos práticos é questionada. “O Plano é um instrumento fundamental, ele dá a direção para que estados e municípios façam os seus planos locais. Porém, se não tem recursos nos municípios para uma capacitação ou para a estruturação dos serviços, pouco vai adiantar ter um plano nacional e indicadores. Esse planejamento teve uma construção diferente da anterior, quase não teve participação de organizações da sociedade civil, então como isso sairá de um documento teórico para um documento prático?”, indaga Eva.
“Sabemos que esse ano não é um ano do ‘como’, pois cairemos no segundo semestre para um momento de congelamento das ações de políticas públicas devido às eleições. Então, o nosso ‘como’ começa no ano que vem. Nossa preocupação atual é conversar com os partidos, candidatos ao governo. É com eles que precisamos ter uma agenda focada nos direitos da criança e do adolescente”, afirma a gestora da Childhood.
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