Carteirada é aspecto cultural do brasileiro
Uma oposição ao "jeitinho cordial" do brasileiro foi construída pelo sociólogo Roberto DaMatta. Em seu livro Carnavais, malandros e heróis, de 1997, ele lembra que o "sabe com quem está falando?" não é motivo de orgulho para ninguém. Para DaMatta, além da antipatia da expressão, ela esconde a nossa própria imagem e revela um aspecto dos mais hipócritas sobre a demonstração de violentos preconceitos.
A psicóloga Julieta Arsênio, especialista em Comportamento de Trânsito e diretora do Departamento de Crimes de Trânsito e Perícias da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet), lembra do caso ocorrido no Rio de Janeiro, em que uma agente foi condenada a pagar R$ 5 mil de indenização a um juiz que dirigia sem habilitação, num carro sem placas e sem documentos.
A agente carioca Luciana Silva Tamburini flagrou o juiz João Carlos de Souza Correa. Como resposta à reação dele, Luciana disse que o juiz não era Deus. A indignação popular com a condenação levou à formação de uma "vaquinha" para ajudar a agente a reunir o dinheiro.
"O condutor infrator, além de impor sua posição profissional, ainda recorre a experiências já vivenciadas ou relatadas por amigos, simula comportamentos não cabíveis a um magistrado. Nesse caso, ele impôs seu status e ainda deu voz de prisão a alguém que estava apenas cumprindo seu dever", observa.
Para ela, o uso dessa relação de poder para tentar escapar de uma punição ainda é comum. "Enquanto tivermos pessoas com o perfil sabe com quem está falando o nosso trânsito continuará sendo considerado um dos maiores genocídios humanos, num século em que o desenvolvimento tecnológico avança a cada dia e o homem se mantém inerte", avalia.
Orientação
Principal reclamação é a falta de "conversa" antes da autuação
É quase unanimidade entre os motoristas o argumento de que "só estava ali esperando uma pessoa" ou "estava dentro do carro, ele poderia conversar antes de multar". No entanto, a legislação de trânsito não faz qualquer menção a diálogo antes de se lavrar uma autuação. "Se você tem carteira de habilitação, tem autorização para dirigir um veículo e a obrigação de conhecer a legislação de trânsito", argumenta Eder Rodrigues, diretor de fiscalização da Setran.
Os agentes são preparados para aplicar o Código Brasileiro de Trânsito. A Setran, por sua vez, promove cursos de atualização e requalificação, incluindo abordagem social, que prepara o agente para atuar em situações que fogem da rotina. "Muitas pessoas não aceitam que se aplique a lei para elas. Elas querem a lei para os outros. Quando são enquadradas, ficam indignadas, questionam o agente de trânsito de forma grosseira, com ameaças e coação", diz.
Para Rodrigues e também para o agente João*, a confusão feita pelos motoristas que insistem na tese da conversa foi causada no início da fiscalização da Diretran, quando havia indicação de reforço na orientação. Atualmente, a conversa depende do bom senso do agente, mas ele não pode se furtar de aplicar uma autuação ao ver a infração se não o fizer, o erro passa a ser dele. Além disso, o motorista que se sentir injustiçado pode recorrer da multa em uma junta específica.
Quatro mil é o número de pedidos de fiscalização que a Setran recebe a cada mês, feitos pela população da capital. Elas se somam às atividades regulares do efetivo da Secretaria de Trânsito. "Temos dificuldade de estar sempre presentes, nos desdobramos para atender as ocorrências", diz Eder Rodrigues, diretor responsável pela fiscalização.
A cena era trivial: dois carros haviam se envolvido em um acidente e um dos motoristas acenou para a o agente de trânsito que passava pelo local. João* estacionou e foi prestar o atendimento de praxe: pediu documentos do carro e carteiras de habilitação. Aí começou o problema. Um dos motoristas era policial militar e alegou que João não teria "competência" para pedir esses documentos, e que, caso insistisse, seria preso.
Foi o que aconteceu. "Quatro viaturas vieram para me conduzir até à delegacia", lembra o agente. O policial ainda tentou processá-lo por abuso de autoridade, mas perdeu a ação. Apesar de o caso ter ocorrido há três anos, o agente ainda processa o Estado por danos morais. Nenhuma decisão foi proferida.
O caso é um retrato extremo mas não raro do que acontece aos agentes de trânsito na capital. Curitiba tem 355 profissionais. A cada mês, dois a três relatos de agressões mais contundentes chegam ao setor de gestão de pessoas. Em 2014, até a última semana foram 23 relatos de agressão.
Um caso grave ainda está sob investigação: um agente de trânsito foi assassinado, em agosto, enquanto trabalhava no bairro Cidade Industrial de Curitiba. Rinaldo Lopes, de 50 anos, levou um tiro dentro da própria viatura. Ele atendia a um pedido de verificação de estacionamento irregular quando foi abordado por dois homens que estavam em uma moto e efetuaram o disparo.
Segundo João, xingamentos são constantes. "FDP é como bom dia. Você tem que se acostumar", desabafa. Já os casos em que há violência física são mais raros, mas ainda assim ocorrem. Em meados dos anos 2000, uma agente que fiscalizava o Estacionamento Regulamentado (EstaR) apanhou de um juiz.
Por isso, desde a época da Diretran existe o Grupo Anjo, formado pelos próprios funcionários, que tem como objetivo apoiá-los e orientar nos casos em que há necessidade de registro de boletim de ocorrência ou até mesmo de ações judiciais.
Arrogância
Ele conta que o "você sabe com quem está falando" é usado indistintamente, mas há "tipos" que tentam se valer da posição ou profissão com mais frequência. Além de pessoas que aparentam alto poder aquisitivo, estão na lista profissionais do Direito de modo geral, policiais, padres, pastores e políticos, que além de tentar se livrar de eventuais multas, também invocam sua base de votos.
O modo de atuação inclui a tradicional carteirada, até reclamações em sermões de missas uma vez que carros estacionados em cima da calçada são multados, incluindo os que estão atrapalhando os pedestres na frente de igrejas. Há quem ligue para secretários de estado e diretores de trânsito, e os que fazem discursos inflamados contra os agentes no plenário de casas legislativas.
Recentemente, outro problema enfrentado pelos agentes está ligado à ação de criminosos, que intimidam e até impedem a entrada dos profissionais em determinadas comunidades.
"Apesar da fama de arrogantes ou prepotentes, os agentes têm de ter calma para lidar com isso. Estamos fazendo o nosso trabalho e cumprindo a lei. É meu dever autuar uma irregularidade, não há outra possibilidade", diz João*.
Mais agentes
Os 355 agentes da Setran estão divididos em duas unidades, de fiscalização e estacionamento rotativo. O esquema de trabalho tem sete turnos. O problema é a quantidade de profissionais. Uma recomendação do Denatran diz que deve haver um agente para cada mil veículos. Curitiba, que possui uma das maiores frotas do Brasil, precisaria de 1.355 agentes
*Nome fictício
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